domingo, abril 19

O Militante


O som reinante no quarto – o tique-taquear do Westclox – foi destituído pela leve freada de um carro lá fora. Era um carro de praça como se chamava naquela época os taxis. Logo seria a vez do barulho de uma porta de carro batendo cuidadosamente. Não falei? Vera que estava como que dormindo, mas na verdade apenas deitada e de olhos fechados esperando pelos sons que ela sabia que se repetiriam como nas outras noites, esperou o som do carro vermelho – ela sabia que era vermelho não só porque os carros de praça daquela época eram todos vermelhos, mas porque um dia espiara pela janela - se distanciar para ouvir os passos furtivos de Paulo na pequena escada que havia na frente da casa.
Agora ele iria abrir a porta com todo o cuidado do mundo. Vera sabia daqueles sons de cor havia uns seis meses. Ela abriu um só olho e viu no despertador sobre o criado-mudo que já passava das três. Ela só conferia os horários das chegadas furtivas do marido no exato momento em que ouvia o barulho da porta da frente ser fechada. Esta era à noite em que ele chegava mais tarde. No começo era lá pelas vinte e uma e ela ainda estava acordada. Com o passar dos dias ela deixou de perguntar – “implicar” como Paulo preferia – onde ele estava, com quem estava, o que estava fazendo, aquelas coisas que mesmo quem não é ou não foi casado já sabe. Para que perguntar? Ela já sabia o que ele iria responder!
A semi-escuridão do ambiente diminuiu quando Paulo, como um ladrão abriu a porta e entrou no aposento. Despiu-se e vestiu o pijama. Naquela época não se falava em ninjas, mas foi mais ou menos assim que ele deslizou para a cama. Quando ela o percebeu já estava roncando.
Paulo não fumava, mas o leve odor de cigarro era explicável, afinal, no escritório quase todos fumavam! Cheiro de álcool, isso nunca ela percebera. Perfume? Só o barato que ele usava desde o tempo de namoro.
O jeito era deixar pra lá e dormir, amanhã é mais um dia cheio nos afazeres de casa. Puxou a coberta até o ombro lentamente para não despertar o cansado marido. Fechou os olhos e dormiu. Quer dizer: pensou em dormir. Era difícil dormir com a cabeça cheia de dúvidas e suposições. Quem conhece a dúvida sabe o que isso quer dizer.
Ficou a virar-se cuidadosamente na cama pra lá e pra cá. Inútil o sono não vinha e, aquela eterna burrice humana que todos nós temos de ficar girando na cama quando não se consegue dormir não a deixava dormir mesmo. Ou seriam somente suas inquietações?
Não houve remédio. Furtivamente como o marido deitara, ela levantou-se. Cobriu-se com o penhoar – não que estivesse frio, era aquele pudor. Que fazer! Aquilo era algo de família! – e deixou o aposento. Resolveu dirigir-se a cozinha para tomar água. Talvez fosse passar roupa, quando o sono volta-se ela voltaria para a cama e assim amanhã o serviço estaria adiantado. No caminho, entre a sala e a cozinha ela viu o paletó do marido repousado no espaldar de uma cadeira. Estancou...
Se houvesse algum segredo, se houvesse alguma pista era ali naquele paletó que estaria. Era a chance! Não era a primeira, pois ela poderia já ter feito uma busca nas outras noites, mas nunca teve coragem ou quem sabe idéia de fazer – “a Verinha não é lá muito boa com idéias”. Ecoava aquela frase muita vezes repetidas pelo falecido pai de Vera em algum canto ressentido de seu coração.
Não... Definitivamente ela não iria fazer aquilo! Não era certo! Desconfiança entre marido e mulher era algo comum, não só a vida, mas as rádio-novelas atestavam que era assim mesmo. Agora revistar os bolsos do esposo como se fosse uma policial dando uma batida, aquilo ela não faria, afirmou para si enquanto retirava do bolso interno do paletó um pequeno bilhete amarrotado.
Os pés de Vera perderam o chão, sua cabeça começou a rodar. Teve que sentar, caso contrário...
Ela sabia o que era certo fazer. Recolocar o bilhete onde o encontrara sem nem ao menos abri-lo. Às vezes é melhor a dúvida que a certeza. A dúvida poderia durar para o resto de “suas” vidas, já a certeza a machucaria para o resto de “sua” vida. Mas claro que as coisas não são assim tão práticas na vida real. Abriu...
“Amanhã no mesmo horário e mesmo local...SRPP.”
Cadela! Ainda tem o desplante de colocar as iniciais!
SRPP! Quem seria a umazinha? Sarah? Simone? Sandra? Sibele? Não Sibele era com “c”.
Há! Mas ele vai ter de dar conta desta porcalheira toda! Então eu fico o dia todo em casa trabalhando como uma escrava para ele e seus filhos e ele me apresenta esse papelão... Não! Filhos dele uma ova, meus filhos! Sou eu quem dá duro o dia inteiro para cria-los longe das sujeiras do mundo. Ele pelo contrário, trás a sujeira para dentro do nosso lar... Meu lar! – Fez o percurso inverso até o quarto na metade do tempo. Abriu a porta com toda a força e raiva do mundo.
Paulo pulou da cama e gritou assustado algo que ela nem entendeu. Fitou os olhos em brasas da esposa – aqueles não eram os olhos dela – e depois viu o bilhete na mão trêmula. Passou as mãos no rosto, da testa até o queixo, daquele jeito que se faz quando se esta em uma situação mais ou menos constrangedora e sentou-se na cama.
E então? Começou ela. Então o que? Devolveu. Vera começou aos gritos contidos para não acordar as crianças a cobrar quem era aquela vagabunda, quem era SRPP, o que ele estava pensando e tudo o mais. Você não vai falar nada? Perguntou por fim.
Falar o que? sua doente! Foi o que de melhor ele encontrou enquanto procurava coisas melhores e mais sensatas. Ela começou a carga novamente, estava decidida. Decidida e louca da vida como ele nunca vira. Não resistiu, em um salto ficou diante dela ameaçadoramente e não a poupou.
Cale a boca sua ignorante! O que tu pensa que é para fazer esta cena ridícula. Porque não vai ouvir suas novelas, sua fútil. Deixe-me dormir em paz é só o que eu te peço – e por aí foi até o momento em que o menor começou a chorar no quarto ao lado.
Vera correu para acudir o filho e Paulo apagou a luz e jogou-se na cama decidido a dormir.

* * *

Novamente o silêncio. Não um silêncio de paz, mas um silêncio desolador, de derrota e de tristeza. Depois do acontecido o certo era ela mandar o adúltero dormir na sala, mas ela nem havia pensado nisso. Aliás, ela não estava pensando em nada. A cabeça era algo que naquele momento servia só para doer. Se fosse para pensar em algo, pensariam em tomar uma Cibalena.
Chegou ao quarto. A cama estava vazia e a luz acesa. Os olhos cansados de Vera correram por todos os cantos a procura de um sinal que indicá-se que Paulo fora embora. Não encontrou nenhum sinal – estava tudo ali - e sentiu o coração um pouco aliviado. Ouviu o barulho de uma cadeira atritar-se com o piso da cozinha. Foi para lá.
Senta! Foi a ordem que ouviu de Paulo que a fitava com um rosto sério por traz de uma xícara fumegante de café.
Sentou-se. Serviu-se também do quente café e a presença do marido e o cheirinho de café lhe trouxe de volta e a deixou mais calma. Ele sorvia o líquido com um barulhinho que lhe era peculiar e balançava a perna cruzada como sempre fazia. Agora ela estava totalmente calma. Estava pronta para voltar para a cama e dormir, só não o fez porque o marido perguntou calmamente: Então minha filha, o que tu queres saber?
A pergunta é muito obvia – pensou -, mas ela não sabia como começar. Ficou por um bom tempo fitando-o até que ele a incentivou com movimentos com os braços e cabeça que queria dizer: E daí? Fale! Quem era SRPP foi por onde ela começou.
Não é quem é ela e sim o que é SRPP! É uma operação clandestina! – respondeu secamente.
A esposa é lógico, não entendeu nada e pediu explicações ao que o marido explicou: que era um serviço em que ele e outras pessoas estavam desenvolvendo clandestinamente. Ela poderia até não saber, pois só tinha ouvidos para as rádio-novelas, mas, ele até que entendia um pouco de sua alienação, afinal de contas ela ficava o tempo todo em casa cuidando dos afazeres domésticos e das crianças e por certo não percebera que o governo que havia derrubado o ex-presidente Jango com a promessa de acabar com o perigo do comunismo e defender as instituições, estavam prendendo, torturando e matando muita gente. Vera quis protestar, - que história maluca era aquela? – mas, ele não deixou ela continuar.
SRPP queria dizer algo que ela nunca deveria repetir para ninguém em hipótese alguma. “Serviço de Resgate de Presos Políticos” – Era isto que queria dizer aquelas iniciais que ela nunca deveria ter descoberto e, o beijo era uma forma de despistar caso o bilhete fosse interceptado. Ele escondeu dela e de toda a família o importante e perigoso trabalho em que estava envolvido para protege-los. O trabalho era simples mas perigoso. Ele, e outras pessoas que ele não podia revelar os nomes, nem para ela que era sua esposa, resgatavam nas prisões presos políticos que estavam correndo risco de vida e levavam para o exterior.
Mas eu não entendo! – replicou a estupefata esposa -, se nós moramos tão longe das fronteiras de outros países, como você pode levar alguém para fora do país sem se ausentar por pelo menos um dia inteiro.
Muitas coisas tinham de ser feitas, as quais ele era incumbido eram feitas ali mesmo na cidade, mas não me peça para dizer o que é, quanto menos você souber, mais segura estará, você e as crianças. – Ela nunca vira tanta seriedade no semblante do marido.
Vera ficou envergonhada a princípio, depois apavorada – o marido estava envolvido em algo muito perigoso – por fim veio o orgulho depois que ele falou que não se importava com a própria vida, o que ele fazia era pelo bem das crianças, pelo bem de Vera e pelo bem de seu país.
O dia já vinha surgindo. Foram dormir de “conchinha”.

* * *

Mas o que você tem na cabeça? Nunca mais coloque bilhetinhos no meu bolso! – Ordenou Paulo cochichando para os demais funcionários do escritório não ouvir -. Sandra Regina Passos Pereira não pode conter um maroto riso. Paulo a puxou discretamente para o corredor onde não havia ninguém para ouvir.
Não vai me dizer que a esposinha encontrou o bilhetinho? – começou a brincar, mas foi atalhada pelo amante. Você não pode fazer isso sua louca, você sabe muito bem que tenho uma família para cuidar! E ainda por cima colocou tuas iniciais! Você quer me expor e se expor, é isso? – E narrou nervosamente o que havia acontecido na noite anterior em sua casa, mas acabou sendo acalmado pela risonha Sandra que falou que agora, como aquela tola engoliu essa história absurda, poderemos nos encontrar com mais facilidade.

* * *

Paulo e Sandra continuaram a se encontrar após o expediente, agora sob a proteção do “Serviço de Resgate de Presos Políticos”. Tudo continuava como antes, não fosse pelo fato de Vera esperar o “destemido” marido acordada, não só para se certificar que nada de mal havia acontecido a ele mas, também para ouvir emocionada alguns fatos referentes as supostas operações que o marido ia soltando gota-a-gota, não sem um certo cínico orgulho. A coitada acredita em tudo! Mas é melhor assim. Desde que o mundo é mundo o esposo tem seus casos fora do casamento, afinal não se pode fazer certas coisas com a mãe de nossos filhos!
Depois de ouvir aquelas histórias que pareciam sair de romances ou das novelas do rádio, Vera dormia o sono dos anjos. Era durante o dia que ela era tentada. O marido fazia um trabalho tão importante, um trabalho despojado, afinal de contas aquilo era feito pelo bem do pais, não era apenas para ele e sua família mas, para todos, inclusive para a Maribél que vivia falando mal dele. Ela não podia dizer para a vizinha que o marido fazia aquele tipo de trabalho e não aquilo que a amiga falava. Não o Paulo não tem uma amante, ele é um combatente da liberdade era o que ela queria dizer para a Maribél. Era horrível não poder falar a verdade para sua melhor amiga. Ela não acusava Paulo por maldade, ela mesmo que era a esposa chegou a pensar aquele absurdo do marido.
Bateram a porta. Vera abriu e era a amiga que entrou já falando que aquilo não podia continuar daquela maneira, ela vira na noite anterior a hora que o marido da amiga chagara, Vera tinha que dar um basta naquela indecência, os vizinhos todos já estavam comentando, ela não podia permitir que fizessem aquilo com a amiga.
Sim! Vera tinha que dar um basta, quanto aos vizinhos ela não podia fazer nada, se vazasse o que Paulo fazia, ele sem dúvida seria preso, podia ser torturado o coitado, até podia ser... Não! Nem ia pensar naquilo. Era melhor ela ficar falada que o “generoso” marido correr perigo, mas Maribél teria de saber a verdade, cortava-lhe o coração ver a melhor amiga falando aquelas coisas sobre Paulo.
Vera explicou que o que iria falar era altamente sigiloso. A guarda do segredo dependia a vida de Paulo, dela e quem sabe até das crianças. No começo Maribél protestou e chamou a amiga à razão, mas quando começou a saber os detalhes viu que não podia ser mentira, havia muitos detalhes, ela mesmo já havia escutado algo que seu irmão falou sobre esses casos de desaparecimento de pessoas e de torturas. Não havia dúvida! Sentia-se envergonhada agora que sabia de tudo. Como ela pode ser tão cega, tão insensível.
Com o passar do tempo, Maribél para acabar com aquela maldade que faziam com a amiga e seu esposo começou a confidenciar com as pessoas mais próximas o tal segredo que deveria guardar para preservar a vida de seus vizinhos. Com o tempo a vizinhança foi entendendo que não se tratava de sacanagem, mas sim de um trabalho muito perigoso e importante.

* * *

Vera estava lavando a louça do café da tarde enquanto escutava uma novela ao rádio. Levou um susto e quase deixou cair o pires no chão quando viu o marido entrar correndo em casa as cinco da tarde. O esbaforido marido pediu para a assustada esposa arrumar uma mala para ele com poucas coisas, ele teria de viajar de ultima hora, era um político importante que devia ser tirado dos pais. Ela –a esposa – deveria também fechar as cortinas para não chamar a atenção, um carro o pegaria dali a pouco por pessoas do SRPP na esquina, mas ela não deveria nem ao menos vê-los, quanto menos ela soubesse, mais segura ela estaria.
Tão logo ficou pronta a mala, Paulo beijou os dois filhos e despediu-se da esposa com um longo beijo. Cuide das crianças – pediu -, prometeu voltar dentro de uma semana no máximo. Bateu a porta e postou-se na esquina. Vera nervosa e preocupada com o marido não se conteve e espiou por trás da cortina da sala. Lá estava o marido olhando para um lado e outro, ele devia estar muito preocupado. Devia ser um político muito importante mesmo.
Um carro preto veio em alta velocidade e parou em frente a Paulo. Dois homens com roupas da mesma cor do carro apearam e introduziram Paulo na parte de trás do carro e partiram na mesma velocidade em que chegaram. Vera fez o sinal da cruz e pediu proteção para o marido e para os dois companheiros que iriam junto com ele para aquela perigosa operação.
A esquina ficava longe e ela não pode ver o rosto dos dois homens, mas sabia que era melhor assim! Deveria saber o mínimo possível, era um a questão de segurança.
Ouviu o barulho de mais um carro. Espiou cuidadosamente. Era vermelho. Era um táxi. O carro parou na mesma esquina. O motorista depois de uma longa espera virou-se para o carona e falou algo. Esperaram por mais um tempo. Vera forçou o olhar e viu que o carona na verdade era uma mulher. Ela falou algo e o carro partiu.


* * *

Paulo prometera voltar no máximo em uma semana, mas passaram vinte anos e nem noticias.
Sandra Regina cansou de esperar o amante na esquina- aquele covarde não teve coragem de dar um pé na idiota da esposa -. Rasgou uma das passagens para Buenos Aires – ficando apenas com uma - e mandou o carro seguir para o aeroporto. Hoje ela é esposa de um importante empresário argentino.
Vera continua até hoje tentando encontrar o corpo do esposo, bem como a encontrar alguma informação sobre o SRPP para poder resgatar a história do bravo militante.
Stanis Fialho, 12.06.2007

Um comentário:

Bárbara disse...

Meu Deus do céu, Stanis! Tu é genial! Não esperava essa, não esperava que fosse uma amante de verdade e melhor: foi mtobom eu teresperado esses dias para ler o final, porque eu imaginei várias coisas, mas o teu final conseguiu me surpreender fantasticamente! Tu é D-E-M-A-I-S LALAU! publique isso em algum lugar, pelamordedeus! Bjooooos!