segunda-feira, novembro 29

Pequenas Crônicas de Pequenas Pessoas de Pequenas Cidades . 23


Ele era o tipo do cara que não tinha jeito com as mulheres, mas para defender-se perante os amigos contava muitas vantagens.
Chegou no bar e sentou-se com os amigos. Logo chamaram-lhe a atenção para uma gata que não tirava os olhos dele. “Vai lá garanhão”, “Ta na tua” diziam. Para não fazer feio tomou coragem, pediu um uísque e foi. Apresentou-se e pediu para sentar ao lado dela. Não sabia o que falar, mas por sorte ela era daquelas que gostavam de falar.
Logo estavam em vários papos. Ele orgulhoso olhava furtivamente em direção aos amigos e via que eles o observavam e cochichavam em meio a risos. Estava garantida a imagem de galã que ele tentava criar!
Mais algumas doses e foi surpreendido por um lascivo e molhado beijo. Entregou-se! Estava “podendo”. Não só conseguira uma estupenda gata como provava para os “gurizes” que era o cara.
Muitos beijos e amassos após, ela levantou-se dizendo ir ao banheiro. Enquanto ela afastava-se ele virou o rosto em direção a mesa dos amigos com cara de gostosão. Os amigos, não mais riam. Eles literalmente se rasgavam em gargalhadas.
Ele confuso olhou pra o lado e viu sua “gata” entrar no banheiro que ostentava a palavra: HOMENS.
Pagou rapidamente a conta e foi embora.

Qualquer semelhança com qualquer coisa ou pessoa é meramente qualquer coisa

sexta-feira, novembro 26

RE-POSTAGEM 7 ou sem tempo e/ou preguiça e/ou inspiração

SONHO DE GURI
Postado originalmente em Agosto de 2008

Pode parecer bobagem para a gurizada de hoje, mas quando eu era guri, o meu sonho era ter uma TV. Com o tempo tive outro sonho: Era ter um escafandro.
Quando eu era guri a minha visinha tinha uma TV. Luxo na época. Só pessoas muito ricas tinham TV’s – ou melhor TV, duas era uma afronta -. Por sorte, D.Evita era muito legal, e por não ter tido filhos, convidava toda a gurizada da rua para ver Rin-Tin-Tin, Perdidos no Espaço e outras maravilhas da época.
Eu logo percebi, que não existindo nada melhor que TV, deveria subornar D.Evita e ficava sempre de prontidão para todos os pequenos trabalhos que ela precisava. Ia fazer compras para ela, cuidava do jardim que era seu “xodó” e outras “coisitas” mais.
Em pouco tempo fui permitido e assistir TV três dias por semana na casa de D.Evita. Terça, quarta e quinta. Mas quarta era o melhor de tudo. Passava “Viagem ao fundo do mar” e eu sonhava em viajar no Sea-View que na época nós garotos chamávamos de civil.
Um dia, um personagem evadiu-se do submarino e andou de pé no fundo do mar com uma roupa estranha. Um macacão, botas de solas enormes, um cinturão cheio de barras de chumbo para mantê-lo no fundo e um capacete em forma de bolha de metal com três escotilhas, duas laterais e uma à frente do rosto. Todas com uma gradezinha de ferro.
Naquele exato momento soube: Meu sonho é caminhar no fundo do mar com um escafandro.
Quis fazer parte do clube de regata da cidade, não tinha nada haver com escafrandro, mas tinha o contato com a água. Meu pai achou perigoso. Não fui!
Quando comecei a trabalhar quis fazer natação, meu pai morreu e meu salário ficou direcionado ao sustento dos estudo de meus irmãos menores.
Cresci! Venci! Mas nunca caminhei no fundo do mar com um escafandro. Nunca fiz sequer hidroginástica ou uma apnéia.
Montei uma loja de materiais esportivos, mas nada que pude-se lembrar um passeio no fundo do mar.
Casei. Tive três filhos. Sou avô prematuro e não fiz nada do que sonhei em minha juventude.
Agora, depois de ser avô e meus três filhos casarem-se, minha mulher sumiu. Não reclamo por isso. Se tivesse coragem eu mesmo faria isso.
Depois de muitas viagens pelo google, comprei um escafandro e o coloquei no porta-malas.
Tomado de uma coragem não sei de onde, avisei meus filhos: Fiquem com a loja, vou viajar e viver tudo o que não vivi em toda a minha vida!
Protestaram. Não dei ouvidos.
Acham que fui errado? Dias antes, providenciei a passagem de minhas lojas para meus filhos. Eles não sabiam. Eu apenas queria caminhar no fundo do mar com um escafandro, depois disso...
Peguei meu carro e meu escafandro e parti. Não sabia nem para onde, apenas sabia que queria ir para onde havia mar. O meu objetivo era mergulhar com um escafandro, aquilo era o meu sonho.
Quando meus olhos começaram a cansar, parei em um hotel a beira mar para dormir, mas a alegria contagiante do barzinho em frente ao hotel seduziram-me.
Se você teve saco de ler até aqui, sabe que sou um cara muito careta, daqueles que só assistem TV e acham tudo chato. Sei! Eu era assim! Mas agora queria mudar.
Tomei todas e me fiz de garotão. Dei em cima das menininhas e algumas até responderam ao meu chamado – Claro que não por minha aparência, mas sim pela quantidade de dinheiro que minha aparência aparentava -. Fiquei bêbado logo! Não estava acostumado a beber.
Levei duas para o quarto.
Não lembro o que aconteceu, só sei que agora estou dentro do porta-malas do meu carro com as mãos amarradas e não sei o que vai acontecer!
Mas se jogarem o carro na água, aqui ao meu lado esta o meu escafandro.
Sonho de guri é batata!...

quinta-feira, novembro 18

JORNALISTA RETRÓGRADO

E EU QUE PENSAVA QUE "CERTOS" JORNALISTAS AQUI DO RS ERAM RETRÓGRADOS!

quarta-feira, novembro 17

RE-POSTAGEM 6 ou sem tempo e/ou preguiça e/ou inspiração

Postado originalmente em AGO.2008

O VISITANTE
Ninguém mais sabe o que é um cântaro, mas era assim que estava chovendo. O ônibus parou como sempre parava e Lucia apeou. Não com a mesma desenvoltura com que costumava descer na época em que as pessoas sabiam o que era “chover a cântaros”, desceu com um certo cuidado, agora havia um pouco o peso da idade e não era mais a mesma mocinha e além do mais havia a chuva. Calçada molhada é um convite a fraturas no cóccix.
Droga... Deveria ter pegado a sombrinha antes de descer pensou Lucia. Correu para baixo de uma marquise. Puxou a gola do casaco ao encontro das orelhas para melhor se proteger.
Poderia abrir a porta de metal envidraçada que estava a sua frente, mas não o fez. Olhou o outro lado da rua pela imagem embaçada no vidro da porta e viu que o “Sérgius” estava aberto. Pensou em dar uma rápida passadinha lá para tomar algo para esquentar o corpo, afinal havia molhado-se ao descer do ônibus.
Virou-se decidida e rumou para o bar. Não olhou para os lados, não queria ser vista entrando num bar as 23:30h pelos vizinhos. Sabia que o fato de olhar para frente não impediria de ser vista, mas aquilo lhe dava alguma segurança.
Pensou em parar em frente à porta do “Sérgius” e ponderar se deveria entrar ou não, mas não o fez.
Tão logo entrou, sentiu um calor familiar vir ao seu encontro, só então percebeu o quanto estava frio lá fora.
Tentou tirar o peso da água que escorria e tornava pesado seu leve casaco. Viu ao fundo uma mão acenar, fez de conta que não viu, não queria conversar com ninguém e além do mais detestava essas pessoas que freqüentam bares. São pessoas fúteis, pessoas de vida sofrida e que aborrecem os outros com suas histórias e, aquela mania que elas tem de achar que só elas tem uma história triste a aborrecia.
Sentou-se num familiar banco alto e desconfortável em frente ao balcão. Não vou demorar muito – resolveu.
_Oi D. Lucia. Como vai? Vai querer o que?- O sujeito não era idiota, ele falava aquilo sempre só para começar a conversa, idiota era a pergunta, pois ele sabia o que ela queria.
_Acho que fiquei sem cigarro... Dê-me um maço, por favor.- Sérgio fez como sempre fazia havia dois anos e alguns meses. Entregou o cigarro e ficou esperando o próximo pedido. Pedido que ele já sabia qual seria, mas não ousava sugerir sem antes esperar uma deixa.
Lucia olhou de soslaio para a prateleira um pouco acima a sua direita. Viu o que realmente queria e falou que havia molhado-se e poderia ficar resfriada.
_Quem sabe à senhora não toma alguma coisa para esquentar-se antes de recolher-se?
_É... Acho que seria bom... Dê-me um gim com tônica.- falou aquela frase como se fosse a primeira vez em dois anos e alguns meses.
_Tó!- Idiota, porque falar “tó” em vez de “aqui está”?
_ Obrigado Sérgio, vou tomar este e cair na cama que amanhã tenho muito o que fazer na repartição.- pegou o copo com uma certa aflição. Sabia que deveria tão logo terminar aquele drinck ir direto para casa e dormir.

* * *

Sérgio deu as costas para Lucia e foi cuidar de seus afazeres, um dono de bar não pode dar dedicação exclusiva a um só cliente, ele aprendera com seu falecido pai que ser dono de boteco é algo mais. “Um dono de bar é como um pastor para as suas ovelhas” vaticinava o falecido pai. É verdade que o pai falava em pastor no sentido religioso, ele não, o casamento com Belmira o ensinou a não brincar com coisas de religião, ele preferia usar o termo como o de um pastor cuidando no campo de animais. Sim! Muitos daqueles pobres animais precisavam de amparo e, ele não se furtava a essa obrigação e só por isso não se sentia culpado em fornecer bebidas aqueles pobres e carentes animais.
Lucia bebeu vagarosamente seu gim tônica. O primeiro era sempre mais demorado. Conferiu no display do celular – 00:02h -, já era muito tarde, teria de ir embora.
_ A conta, por favor. – Sérgio abandonou os conselhos que dava a um cliente de sempre e foi ter com ela. Deu o valor da despesa e como de praxe ofereceu: _Mais um?
_É... Acho que mais um não seria demais! – E assim ficaram como sempre ficavam até o momento em que as pálpebras de Lucia começaram a pesar e a visão ia acompanhando o peso do sono.
Pagou e saiu tesa para não dar na vista que as pernas já não eram dominadas somente por ela. Abriu a porta e novamente percebeu que lá na rua estava frio.
Parou perto ao meio-fio. Já não chovia. Divisou a porta de seu prédio no outro lado da rua e foi em passos firmes – ao menos assim ela imaginava.
Parou em frente à porta e procurou na bolsa as chaves. – Porque as mulheres são tão idiotas e sempre carregam tantas coisas na bolsa – praguejou em meio à vã tentativa de achar as chaves. Passaram alguns segundos e nada de as encontrar. Não havia jeito, teria de emborcar o conteúdo da bolsa na soleira da porta para poder encontra-las.
Fez! Nada! Nem sinal das chaves. Tornou a recolocar aquele infindável conteúdo na bolsa. Pendurou-a no ombro e escondeu as mãos do frio nos bolsos do casaco. Os interiores dos bolsos eram confortavelmente aquecidos, mas o da direita havia algo duro e frio. Eram as chaves, só então lembrou que havia separado-as ainda no ônibus para não ter o trabalho de procura-las ao chegar em casa.
Não foi muito penoso encontrar o buraco da fechadura. Girou as chaves no sentido horário, enquanto olhava pelo espelho embaçado do vidro da porta se alguém a observava. Ninguém! Ainda bem, ela sabia que havia bebido mais da conta como normalmente fazia há dois anos e alguns meses.
Não pegou o elevador e foi pelas escadas. Pela manhã ela sempre usava o elevador, mas a noite sentia um certo enjôo. Sabia que era o efeito do gim, mas não aceitava o que sabia. Era só dois andares, mas era terrível. – Esses malditos arquitetos fazem escadas fora de padrão. – cada degrau tinha uma altura diferente e o pior é que amanhã essas alturas mudam novamente.
Abriu a porta de seu apartamento. Entrou na ponta dos pés para não fazer barulho. Tateou a parede e encontrou o interruptor. CLIC!...
Não adiantou o cuidado para não fazer barulho, lá estava Osvaldo sentado no sofá de sempre olhando ela chegar.
Procurou não olha-lo ou pelo menos não olhar em seus olhos baços. Ela não suportava aquilo. Fechou a porta e largou a bolsa sobre o outro sofá. Com a ponta do sapato esquerdo descalçou o direito e após fez o mesmo com o outro pé. As chaves caíram com um ruído metálico sobre a mesa de centro, mas Osvaldo continuou ali a fitá-la como sempre fazia quando ela retornava da repartição altas horas da noite sob o efeito do álcool.
Não falou nada e foi para o dormitório apagando a luz da sala. Bateu a porta e acendeu a luz. Estava cansada, não sabia se mais pelo dia de trabalho ou pelo gim.
A cama já estava pronta. Deixava a cama sempre pronta antes de sair para o trabalho, pois sabia o quanto era penoso arruma-la à noite naquele estado.
Às vezes ela antes de deitar fazia aquelas promessas de no outro dia voltar cedo para casa e não beber, mas fazia tempo que havia desistido, pois sabia que era em vão. Ela não teria coragem de voltar para casa cedo e “de cara” enfrentar o olhar triste de Osvaldo.
Abriu o guarda-roupas e tirou o pijama. Olhou-se no espelho interno da porta do móvel e viu uma mulher que chegava aos cinqüenta e ainda guardava um pouco da beleza de tempos atrás. O cabelo estava um pouco molhado e dava um tom um pouco sensual ao seu rosto. Resolveu não seca-lo. Tirou o casaco e o vestido, ficou de lingerie. Olhou-se. Tirou o resto da roupa e ficou a olhar-se no espelho.
_Posso não ser uma menina, mas aposto que muito homem ainda me deseja. – Fez uma pose que ela lembrou de ter visto em uma revista masculina. Achou-se sexy. Virou-se um pouco de lado para fazer outra pose e viu Osvaldo a olha-la parado em frente à porta do dormitório.
_Sai! – gritou ao mesmo tempo em que colocava rapidamente o pijama. Osvaldo continuava impassível.
Vestiu-se e pulou na cama. Apagou a luz e cobriu-se até a cabeça. Ficou imóvel por um longo tempo. Aos poucos foi frouxando a musculatura e virou-se de bruços. – como ela gostava de dormir.
Tentou pegar no sono, mas logo sentiu, não um toque, mas uma sensação que seus cabelos estavam sendo acariciados. Um frio correu-lhe pela espinha e fez ela pular de sua posição para a posição sentada. Deu um grito que na certa acordou alguns visinhos que nem sequer deram atenção, já acostumados que estavam com ela. Acendeu a luz...
_Osvaldo – falou para um pálido e triste Osvaldo que estava estaqueado em sua frente com a mão suspensa – eu já lhe falei um monte de vezes, você não pode mais vir aqui. – Osvaldo a ouvia petrificado assim como os seus olhos também estavam.
_Isso não é certo! Vá embora! Me deixe! Você não vê que isso não é normal? – e virou-se de bruços novamente.
Lucia espichou o braço, mesmo sem olhar - pois seus olhos estavam fechados de uma forma que até causavam dor – e apagou a luz.
Vá embora pelo amor de Deus! – e apertou os olhos mais ainda e começou a contar lentamente...
_Um...dois...três... – e foi até o dez, cada vez mais lento até adormecer.

* * *

07:00h.
Lucia acorda. Sente um amargo na língua e no céu da boca. Está desperta, mas parece que o corpo nada dormiu.
Lembra de Osvaldo e pula para fora da cama. Não precisa acender a luz, pois a claridade já invade seu apartamento – sempre depois da chuva vem um dia de sol – e olha para todos os lados a procura do falecido marido.
Nada! Mais um dia que Lucia ficará na dúvida se as visitas de Osvaldo é fruto do álcool ou realmente ele sempre a espera chegar em casa desde o trágico dia em que ele foi fatalmente atropelado.
Stanis Fialho, 10.06.2007

quarta-feira, novembro 10

segunda-feira, novembro 8

Vida de cão


Nasci na rua! Não sei dizer em que cidade. As únicas coisas que lembro é que foi embaixo de um vão de escada de um prédio abandonado e que era frio e chovia muito. Minha mãe - não posso reclamar - até que foi muito cuidadosa. Meu berço era alguns papelões e jornais com muitas palavras que nunca entendi o que queriam dizer. Minha mãe me cobria com a única coisa que tinha: seu velho e cansado corpo.
Ela sabendo que eu teria uma vida difícil, tratou de ficar sempre do meu lado e me ensinou onde deveria buscar os restos. Os restos sempre foram nossa comida e aprendi onde buscar os melhores restos e brigar para garantir meus restos. Vendo minha mãe disputar o que havia nas lixeiras nos melhores bairros a unhas e dentes, logo estava pronto para defender meu pão de cada dia com garra, gana e fome.
Quando minha mãe percebeu que eu já podia me defender por minhas próprias forças, tratou de ir embora e deixou-me dormindo sozinho em um parque. Acordei sozinho e entendi que estava por minha conta e nunca mais veria aquele ser amado que me trouxe ao mundo e agora iria seguir seu destino sem um fardo tão pesado que era seu filho.
Cresci ali pelo centro da cidade vivendo dos restos que alguém me jogava com desdém ou para aliviar a consciência. Do frio e da chuva buscava os vãos mais escondidos que havia.
Já calejado de viver de um lado para o outro, e a própria sorte e pela boa fé de alguns, certa noite fria fui até a lixeira que sabia que sempre haveria algo para comer. Ali sempre tinha um pedaço mordido de pizza ou uma metade de hambúrguer jogada fora. Mas de súbito o encontrei rasgando o saco com seus dentes sujos e afiados. Buscava comida assim como eu. Preparei-me para correr com ele de minha lixeira preferida quando ele me viu e ficou de lado deixando-me os restos de alimentos para mim. A princípio pensei que fosse por medo, mas logo percebi que não. Na verdade ele viu em mim um ser dá mesma espécie e vendo-me com fome, deixou-me comer.
Comi sem cerimônia os restos. Ele ficou ali parado me olhando com a cabeça baixa. Após estar saciado virei as costas e rumei para praça onde eu sempre dormia. No caminho eu virava furtivamente e sempre via ele me seguindo com a cabeça baixa. Cheguei ao local onde sempre dormia e vi ele sentado com um olhar abobalhado a me olhar. Deitei sobre meus jornais e dei-lhe um olhar que ele entendeu que era um convite. Chegou-se sorrateiro e roçou a cabeça em meu peito carinhosamente para provar sua amizade. Dormimos juntos aquela noite lado a lado sabendo que mesmo nós não sendo da mesma raça e família vivíamos na mesma situação.
A amizade estava feita. Ele por mais estranho que possa parecer virou a minha família. Vagávamos juntos pelas cidades, revirávamos as mesmas lixeiras e dividíamos sempre a comida, apesar dos olhares perplexos das pessoas que passavam.
Nas noites de frio ele se enrolada ao meu corpo, nos de calor ele sempre descobria um local mais fresco e sempre que alguém queria fazer-me mal ele botava dos dentes de fora e saia em minha defesa.
Viver na rua é triste! Ainda mais vendo iguais a nós comendo do bem e do melhor e tendo o tratamento VIP que tem.
Mas felizmente eu encontrei um morador de rua um dia buscando alimentos no lixo e que se tornou meu grande amigo, caso contrário minha vida de cão de rua seria muito ruim.

sexta-feira, novembro 5

Pequenas Crônicas de Pequenas Pessoas de Pequenas Cidades . 22


Ontem ela foi embora. Finalmente falou aquilo que nós já sabíamos: O amor terminou.
Recolheu suas calcinhas que se confundiam com minhas meias e cuecas, resgatou sua escova de dentes, as intrusas pinturas, as pseudas lembranças e infelizmente levou alguns CD’s.
Não dei bola! Esperava este momento a muito, só não tinha tido a iniciativa para não magoa-la. Crescemos em uma sociedade machista e não admitimos errar. É melhor esperar o erro alheio delas para não termos de ouvir a culpa jogada no nosso covarde rosto.


Qualquer semelhança com qualquer coisa ou pessoa é meramente qualquer coisa

quinta-feira, novembro 4

O OURO DO AMOR


Desde muito moço ele foi instruído nas artes, na religião, nas lógicas do ocultismo e nas loucuras da ciência. Não renunciou o Deus natural, mas esqueceu o Deus criado a semelhança do homem. Aventurou-se pelos caminhos da alquimia. Tencionava transformar as matérias mais simples e paupérrimas na complexa e cobiçada matéria batizada pelos homens com o nome de ouro. Viveu os melhores dias de sua juventude entre tratados e discussões, pipetas e frascos, metais e ácidos, pensamentos e escritos, sono e insônia, adulações e ojeriza, observações e dissecações, erros e acertos até os dias – e noites, muitas noites - comerem-lhe o viço.
Já cansado - o corpo mas não o espírito -, velho – de corpo mas não de espírito – e pobre – de matéria mas não de espírito – recolheu-se a uma pobre choupana oferecida por um primo próspero no interior - mais por vergonha para tira-lo dos olhares dos confrades do que por bondade – , e por não ter mais força física que aparelhasse com seu hercúleo pensar, viu-se obrigado a dispor do auxílio de uma empregada.
Hertha, uma cinquentona fastidiosa para as coisa da carne e buliçosa para os afazeres domésticos veio habitar um quartinho nos fundos da pobre casa. Apesar da falta de instrução ela tornou-se uma grande ajudante em seus estudos além de manter o casebre limpo, organizado e aquecido.
O mundo obtuso e reduzido dela logo foi sendo edificado pelos conhecimentos e palavras estranhas daquele homem, ao mesmo tempo em que o mundo aberto e infinito dele começou a ficar embebido pela imagem daquela mulher que alem de fazer o que as mulheres faziam tinha uma curiosidade – até então para ele: coisa de homem. Poucos homens – pelo oculto e a ciência.
Os vinte anos que os separavam fez com que ela tivesse de auxilia-lo a fazer a barba, seca-lo após o banho e corrigir os botões da casaca em suas respectivas casas. Este contato – até então proibidos para seu recato – aumentaram sua adoração pelo patrão.
As mesmas duas décadas e os cuidados de Hertha, fizeram pela primeira vez os olhos atentos aos mistérios da física e do oculto, a anatomia dos corpos dissecados e das formações rochosas, aos movimentos das marés e dos astros a perceberem os mistérios, formas e movimentos daquele corpo virgem de meio século.
No segundo inverno que ela residia com ele, uma noite deixou de ser a cena das bruxas e demônios para dar guarida ao cupido. Cupido que veio em forma de uma violenta chuva com ventos piores ainda.
O parco telhado do quartinho de Hertha voou como se mariposa fosse e ela teve de buscar abrigo nos aposentos do velho patrão. O frio e os anos de libido represado os uniu. O vento e a chuva já estavam a inúmeras léguas de distancia e seus corpos ainda buscavam proteção um ao outro.
Desde aquela noite, uma chuva e um vento imaginário enxota Hertha a procurar a guarida do velho alquimista que deixou de querer transformar tudo em ouro, e descobriu o segredo de transformar carne e sentimentos em prazer e amor.