sexta-feira, fevereiro 21

CHOVENDO

   Foi no quarto ano que Gilmar esqueceu aquela coisa de “até que a morte os separe”.
   Ele conhecia Mirtes a muito tempo e nunca a olhou com interesse, até o dia da chuva. Eles estavam no centro vindo de suas casas para coisas diferentes e a chuva se encarregou de fazer as vezes de cupido. Ela veio de repente e os pegou desprevenidos, a porta aberta de um restaurante aquele horário, bem perto a hora do almoço os convidou a entrar. Quando Mirtes entrou ele já estava numa mesa junto a janela. Sentaram-se juntos e almoçaram. Ele não sabe o porquê se interessou por ela, foi assim de repente, marcaram um jantar pra sexta e o resto foi o que a chuva devia ter previsto, depois de uns meses casaram.
   No terceiro ano pensaram em ter filhos mas, Gilmar era estéril. Adotar era uma saída mas optaram por não fazer. Foram seguindo as suas vidas até que ela - a vida - os despistou e cada um passou a seguir sua própria vida.
   Mirtes encontrou no trabalho doméstico, profissional e comunitário sentido para aquela vida que estava chata. Gilmar não se conformava só com o futebol de quarta-feira e um dia quando viu estava num quarto de motel com Mariana, sua colega de trabalho.
   O futebol foi abandonado e no mesmo horário e dia ele entrava em campo no mesmo motel. Os primeiros meses foram maravilhosos mas aos poucos a coisa foi caindo. Muitas vezes Gilmar se pegava deitado ao lado de Mariana pensando “que deveria chover como havia chovido quatro anos antes”.
   Mesmo as coisas não estando as mil maravilhas eles passaram a frequentar o mesmo motel também todas as sextas no horário do meio-dia, e numa sexta abafada uma chuva os pegou no caminho. Com a chuva o trânsito ficou caótico e eles resolveram parar e esperar que a chuva amainasse. Ficaram ouvindo música até que pelo retrovisor embaçado ele viu Mirtes entrar num restaurante. O coração tentou saltar pela boca. Ele não sabia se seu desespero era pelo medo de que eles fossem descobertos ou pelo fato do restaurante em questão ser o mesmo de quatro anos antes. Mirtes estaria ali num dia de chuva para se encontrar com alguém ou só se abrigou da chuva como daquela vez? - perguntava-se desesperadamente.
   Pensou em sair do carro e surpreender os dois mas... e se ela estivesse sozinha? O que iria dizer? Aquela hora não era para ele estar no refeitório da empresa? E o que fazer com a presença de Mariana? Inventou uma desculpa esfarrapada e voltaram sob protestos da amante para o local de trabalho. Tão logo ela desceu do carro ele saiu em desabalada corrida de volta ao restaurante. Saltou sem nem ao menos trancar o carro e irrompeu porta adentro a procura de Mirtes e seu rival, depois de se certificar que ela - ou seria eles - não estava, saiu calmamente sempre observado pelos curiosos olhares que frequentavam o local.
   Ao chegar na rua não encontrou o carro. Haviam roubado o carro que ele deixara com as portas destrancadas, deu um grito de raiva que chamou atenção de todo mundo. Estava com muita raiva, não pelo roubo do carro mas - não sabia o por que - pela chuva!
   Depois do trabalho, foi com Mariana até uma lanchonete, Gilmar terminou tudo com ela. Não deu muita explicação, apenas disse que não podia mais e que tinha de salvar seu casamento ou se salvar, não sabia bem! Mariana entre confusa e resignada ou talvez até confortada se despediu. Ofereceu carona para ele voltar para casa mas ele não aceitou.
   Chegou em casa e caiu nos braços da esposa aos prantos. Ela preocupada queria saber o motivo mas Gilmar resolver esconder sua traição e apenas perguntou o que ela havia feito ao meio-dia ao que ela respondeu que ao voltar do centro para almoçar em casa foi pega pela chuva bem no local onde a chuva os havia unido anos atrás. Ele ao ver a sinceridade estampada nos olhos dela inventou que havia saído a serviço e a viu entrar no restaurante ao meio-dia. Por que não entrou para almoçar comigo amor? Ela perguntou. E foi então que falou a primeira coisa sincera naquele dia: Eu a vi entrar no nosso restaurante com aquela chuva e pensei que você podia ter ido lá se encontrar com outro! Mirtes no começo riu muito mas acabou muito braba com o que ele havia pensado sobre ela. Segui-se uma “DR” como a muito não faziam e acabaram dormindo de conchinha após fazerem amor como a muito também não faziam.
   Ao acordar pela manhã Gilmar fez um juramento ao lado da adormecida Mirtes como se ela fosse uma espécie de santa e a cama um santuário! Nunca mais a trairia em hipótese alguma! Até pensou em acordá-la e contar tudo o que se passara entre ele e Mariana mas acho por prudência melhor deixar assim! Preparou o café e deu-se conta que era quarta-feira, agora que não havia mais Mariana ele poderia voltar ao futebol. Mas não hoje, hoje ele voltaria correndo para casa ou para ser mais correto: para os braços de Mirtes.
   Tudo voltou a ser como era antes de ele esquecer o “até que a morte os separe”. Ele voltou a bater uma bolinha na quarta e a ser apaixonado por Mirtes, ela continuou com seus afazeres domésticos, profissionais e comunitários. Mariana largou o emprego e casou-se com alguém que Gilmar não conhecia. Foram seguindo as suas vidas e ela - a vida - que voltara ao normal seguia junto.
    Dois anos após, ao abrir o facebook Gilmar se depara com uma mensagem de Mariana. Ela dá conta que está muito feliz e que embarcará com o marido para a Europa onde morará, propõe um almoço de despedida. Gilmar faz de conta que nem leu a mensagem e segue seu dia tranquilo. A tarde é no celular que vem a mesma mensagem, não responde.
    Dias após Gilmar cansado da mesmice do refeitório da empresa convida um colega para almoçar fora. Escolhem um restaurante próximo e vão a pé. Nem bem andaram uma quadra o céu desaba em forma de chuva e eles correm para baixo de uma marquise. Ficam ali sem ter para onde ir até que resolvem pegar um táxi. Gilmar acena para um que vem ao longe mas para sua surpresa é um carro de passeio vermelho que para e abre a porta.
    No acento do motorista está Mariana com um largo sorriso chamando-os para entrar, Gilmar fica petrificado sem sair do lugar até seu amigo lhe dar um tapa no ombro, falar que é “a Mariana cara, vamos lá!”, correr e se atirar no banco traseiro. Gilmar corre atrás fugindo da chuva e parece que aqueles poucos dois metros e cinquenta até o carro duram uma eternidade. Por sua cabeça passa toda sua vida desde o dia em que beijou Mariana pela primeira vez. Não lembrava se estava chovendo no dia do primeiro beijo e nem ao menos sabia por que tentava lembrar de um detalhe sem importância como a chuva.
    Foram os três ao restaurante que eles haviam escolhido e após o almoço, Dutra, o colega de Gilmar notou certos olhares entre os dois a sua frente e resolveu voltar a pé antes deles, o que realmente fez mesmo com os protestos de Gilmar. Tomaram um café e a conversa acabou saindo do presente e dos projetos do futuro para um passado que Gilmar havia tentado esquecer. Um pé roçou em sua perna e mais algumas lembranças e foram parar no motel de dois anos antes. Fizeram sexo rapidamente. Foi como ela mesmo havia dito: Uma despedida! Ela não voltaria mais, pelo menos para morar no Brasil, talvez uma visita. Aquela transa seria a despedida que não houve de fato no passado. Ela falava aquilo com certeza e ele além da certeza ficava se justificando que aquilo não teria importância, eles nunca mais se veriam, Mirtes nunca ficaria sabendo e sua vida com a esposa continuaria maravilhosa como estava.
    Depois de uma rápida ducha ela resolveu levá-lo de volta ao trabalho. Ele teria de inventar alguma desculpa para o atraso. Estavam saindo do motel e ficaram trancados sobre o passeio devido ao movimento dos carros que passavam quando ele de repente viu a esposa em uma capa de chuva e uma sombrinha vindo em direção ao local onde eles estavam, Gilmar pensou em cobrir o rosto com as mãos mas ficou envergonhado de fazê-lo. Mirtes passou em frente ao carro e olhou rapidamente para o para-brisas. Não esboçou sentimento algum, talvez a grossa chuva e a película escura os tenham ocultado.
    Voltou ao trabalho e passou o resto da tarde apreensivo. As seis da tarde ligou para Mirtes e ficou em silêncio. Mirtes atendeu e falou-lhe que faria um estrogonofe de camarão com atum que ele tanto gostava, então ele que não demorasse muito depois do futebol que ela o esperaria. Só então ele se deu por conta que era quarta-feira, dia do futebol com os amigos e, o dia que ele sempre traia Mirtes.
    Mesmo com a forte chuva foi ao futebol mas não jogou, nem sequer se trocou. Ficou sentado na pequena arquibancada de concreto a pensar na vida e nas bobagens que fazia com sua - ou suas - vida.
    Voltou a pé para casa. Não chovia mais. A noite estava bafada. Seu coração estava abafado. Lembrou da esposa e de todos os dias felizes que eles passaram juntos, sentia que até aqueles dias chatos e enfadonhos eram bons ao lado dela. Lembrou da promessa que fez ao pé de sua santa deitada em sua cama. Por certo Mariana nunca voltará e Mirtes nunca saberá do que aconteceu, mas... Como olhar nos olhos dela?
    O céu continuava limpo e seco, somente seus olhos choviam!

quarta-feira, fevereiro 19

Pesos e Mentiras

Há poucos dias, uma pessoa muito próxima a mim falou que alguém havia lhe dito algo sobre uma terceira pessoa também próxima a nós, e que ela achou estranho. Não parecia ser a forma desta pessoa agir, ela me disse. Dei minha opinião e fui logo chamado de desconfiado. Não foi a primeira vez que me chamaram assim. Talvez seja pelo fato de que normalmente enquanto eu estou escutando as pessoas falarem, eu vou pondo na primeira bandeja o que me chega aos ouvidos e o que minha cabeça pensa eu coloco na segunda bandeja da balança da pesagem dos fatos e boatos.
Se o ponteiro - Sim! Ponteiro, pois esta balança me acompanha a uns quarenta anos e não poderia ser digital portanto - pender totalmente para a direita onde há a palavra “verdade” na cor verde, eu logo tomo como sendo fato mas, se ao contrário o ponteiro inclinar totalmente em direção a “mentira” em vermelho eu chamo de boato. Ou se for o caso chamo de mentira, invenção, engano, exagero...enfim!
Claro que as vezes fico na dúvida! É o caso do ponteiro ficar pendendo levemente para um lado ou outro, ou então ficar paradinho no meio.
Claro que não uso essa balança para todo mundo! Uso-a para as pessoas que pouco conheço ou então para aquelas pessoas que conheço bastante e confio. Para outras pessoas a balança é diferente.
Para aquelas pessoas que quando você fala que pescou uma traíra de 25 centimetros e ela vem logo dizendo que só faz pesca submarina em alto mar, que quando você fala que passeou de lancha e ela logo vem com o papo que possui um iate, mesmo a gente sabendo que o que ela ganha não compra nem um caique de segunda mão, que quando você fala que estava no aeroporto esperando o voo de um amigo que vinha de Rio Grande,  percebeu lá longe passar a apresentadora do telejornal local e ele já vem com a estória que na última viagem a NY ele encontrou e conversou por altas horas com a Angelina Jolie e até trocaram de números para conversarem mais tarde, que quando você fala que arranha um violãozinho ela vem dizendo que formou-se na maior e melhor instituição musical do país e é pupilo do Issac Karabtchevsky. Para estas pessoas eu uso uma balança especial.
A balança para estas pessoas incríveis - como dizia meu saudoso amigo Mimo: “ Mas o cara não empata uma, só ganha? - que nunca perdem, eu uso uma especial que tem na esquerda a palavra “mentira” como na outra balança, no centro há “exagero” na cor amarelo, e na outra extremidade em verde meio apagadinho um modesto “quem sabe até é possível”.
Às vezes o ponteiro fica num vai e vem entre uma verdade e uma “atochada”, aí para simplificar eu faço como o comerciante desonesto e dou uma forçadinha na bandeja das mentiras como ele força a bandeja das batatas para superar a dos pesos. Sei que é meio desonesto, mas muitos feirantes fazem isso e acaba indo para o céu!
Quem nunca deu uma valorizadinha na história no momento de conta-la? Eu já fiz bastante isso confesso! Mas tem gente que não, ela simplesmente não consegue falar a verdade ou dar uma envernizadinha no papo. Não! Ela tem de mostrar que ela é a melhor e tem tudo o que é melhor! Ela vive num mundo particular só dela onde ela é o centro e a periferia. O caso é tão doido que tem umas pessoas que chegam a acreditar em suas próprias mentiras.
Eu conheci caso de gente que falou que iria para um treino em um autódromo e no outro dia para tentar dar validade a sua mentira, apareceu com o braço enfaixado dizendo que não poderia participar da prova por que capotou o carro em uma fantástica e veloz curva. Conheci pessoa que gravou um disco e quando foi pedido para mostrar falou que brigou com o empresário e de raiva quebrou todos os discos. Claro que isso não é só uma mera mentirinha, isso é doença!

Para falar bem a verdade, tem gente que eu não pergunto nem as horas com medo que ela me minta o horário!