Originalmente publicado em Revista Evidência de 12/07 com o título "Despertar"
Alfredo despertou lentamente. Abriu os olhos bem devagarzinho. Uma tênue claridade entrava pelas frestas da janela. Com um movimento brusco, livrou-se dos lençóis. Não estava frio, não que estivesse quente também. Era uma temperatura ideal. Assim deveriam ser os dias pensou Alfredo. Nem quente e nem frio. A pessoa podia escolher o que vestir sem ter de exagerar na escolha. O exagero nunca foi uma das extravagâncias dele. Mas e quais seriam suas extravagâncias? Alfredo procurou no fundo da memória e não encontrou nada. Ele sempre fora uma pessoa comedida. Em tudo.
Pensou em tomar banho, mas não tomou. Ficou como estava. Assim de cuecas mesmo, nem chinelos colocou. A forração era suficiente, não precisava de chinelos.
Passou pela sala quase esbarrando no pinheirinho que piscava a um canto e foi para cozinha. Viu sobre a mesa restos de sanduíche de presunto e queijo. Só então lembrou de Cíntia. Ela não estava na cama e havia aquele resto de sanduíche sobre a mesa. Ela devia ter saído muito cedo. Estranho não tê-lo acordado. Também era estranho não ter limpado a mesa. Cíntia era neurótica com limpeza. Às vezes aquilo quase enlouquecia Alfredo. Tudo bem que se queira uma casa organizada e limpa. Mas, tudo tinha limites.
Pegou os restos do sanduíche. Ficou sem saber o que fazer. Não tinha fome. Por fim jogou na lixeira, mas não sem antes lamentar: Quantas pessoas não teriam sequer restos de um sanduíche...
Sobre a geladeira estava a carteira de cigarros e o isqueiro. Era quase que maquinal o hábito de chegar pela manhã na cozinha e ascender um cigarro. Mas não. Hoje não sentiu aquela vontade - seria vontade ou mania? -. Tanto faz! Não fumou e viu que estava bem assim.
Um pingo d’água na torneira da pia o lembrou que não havia lavado nem o rosto. Encaminhou-se para o lavabo. Olhou-se no espelho sobre o lavatório. É! Estava com uma cara boa. Talvez um pouco pálido. Também: Inimigo do sol como ele só vendo. Pôs a língua para fora, esticou umas pequenas rugas que já se pronunciavam nos cantos externos dos olhos. É! Não estava mal.
Abriu a torneira. Com as mãos em forma de conchas levou a água ao rosto. Assim como a temperatura do ambiente a da água também estava nem quente e nem fria. Pensou novamente que assim é que deveria de ser.
Voltou para a sala. Jogou-se no sofá e ficou lá parado contemplando o pinheirinho . Era uma calma como nunca havia sentido. De repente percebeu que o silêncio era um bom companheiro. O silêncio não lhe dizia nada, mas também nada perguntava. Bom amigo o silêncio!
Ele buscou na memória uma outra ocasião em que havia ficado somente ele e o silêncio. Não lembrou. Também de que maneira? Cíntia era uma fábrica de ruídos. Falava o dia inteiro, não deixava um só detalhe de seu dia sem um relatório preciso. E ele – Alfredo – ouvia fingindo interesse. Se não era a fala era o aspirador, ou a maquina de lavar, ou a batedeira, ou a novela ou qualquer outra coisa, contanto que houvesse ruídos. Só hoje Alfredo percebeu: Ela devia amar os ruídos.
Passou-se muito tempo e Alfredo percebeu que não havia aberto as janelas e nem ascendido às luzes, as únicas luzes existentes eram as que piscavam a espera da noite de natal . Mas para que luz? Ele não tava fazendo nada. Se não havia necessidade de luz, para que ascender a luz? Manias estranhas nós temos pensou Alfredo.
Olhou para a TV. Ela estava muda. A última vez que ele havia visto aquela TV assim quietinha foi naquela sexta-feira em que faltou energia por uma noite toda. Ah! Que noite... Cíntia até hoje falava que nunca havia feito daquela maneira. Nem quando eram apenas namorados.
Cíntia? Onde andará Cíntia? Bom!... Deve estar no trabalho! Mas e ele? Não deveria estar no trabalho também?
De repente ouve ruídos no lado externo da porta. É uma chave. Só pode ser Cíntia. Somente os dois têm as chaves da casa. E além do mais os ruídos...
Cíntia entra.
Alfredo sorri e levanta para ir abraçar a esposa, mas ela passa por ele e vai para a cozinha. Alfredo sem entender nada vai atrás. Pede atenção, pergunta o que houve, mas ela nada responde. Ele então percebe que a esposa está chorando. Olha diretamente no rosto de Cíntia e percebe pelo inchaço dos olhos que ela estava chorando há muito tempo.
Alfredo implora para que ela pare e diga-lhe alguma coisa. O que houve? Porque ela chorava daquele jeito? O que ele tinha feito? Ele não entendia, estava tudo tão perfeito. Não sentia frio, nem calor, adorou o silêncio, não foi ao trabalho e não se sentia culpado por isso, e o que era melhor, não havia fumado um cigarro sequer.
Lembrou que nem fome tinha sentido quando viu Cíntia pegar os restos do sanduíche de cima da mesa e ir até a lixeira para jogá-lo fora.
Mas... Ele já havia feito aquilo...
Não fosse a falta de frio, Alfredo sentiria um frio correr pela sua espinha.
Ele agora começava a entender: Ele havia morrido.
Alfredo despertou lentamente. Abriu os olhos bem devagarzinho. Uma tênue claridade entrava pelas frestas da janela. Com um movimento brusco, livrou-se dos lençóis. Não estava frio, não que estivesse quente também. Era uma temperatura ideal. Assim deveriam ser os dias pensou Alfredo. Nem quente e nem frio. A pessoa podia escolher o que vestir sem ter de exagerar na escolha. O exagero nunca foi uma das extravagâncias dele. Mas e quais seriam suas extravagâncias? Alfredo procurou no fundo da memória e não encontrou nada. Ele sempre fora uma pessoa comedida. Em tudo.
Pensou em tomar banho, mas não tomou. Ficou como estava. Assim de cuecas mesmo, nem chinelos colocou. A forração era suficiente, não precisava de chinelos.
Passou pela sala quase esbarrando no pinheirinho que piscava a um canto e foi para cozinha. Viu sobre a mesa restos de sanduíche de presunto e queijo. Só então lembrou de Cíntia. Ela não estava na cama e havia aquele resto de sanduíche sobre a mesa. Ela devia ter saído muito cedo. Estranho não tê-lo acordado. Também era estranho não ter limpado a mesa. Cíntia era neurótica com limpeza. Às vezes aquilo quase enlouquecia Alfredo. Tudo bem que se queira uma casa organizada e limpa. Mas, tudo tinha limites.
Pegou os restos do sanduíche. Ficou sem saber o que fazer. Não tinha fome. Por fim jogou na lixeira, mas não sem antes lamentar: Quantas pessoas não teriam sequer restos de um sanduíche...
Sobre a geladeira estava a carteira de cigarros e o isqueiro. Era quase que maquinal o hábito de chegar pela manhã na cozinha e ascender um cigarro. Mas não. Hoje não sentiu aquela vontade - seria vontade ou mania? -. Tanto faz! Não fumou e viu que estava bem assim.
Um pingo d’água na torneira da pia o lembrou que não havia lavado nem o rosto. Encaminhou-se para o lavabo. Olhou-se no espelho sobre o lavatório. É! Estava com uma cara boa. Talvez um pouco pálido. Também: Inimigo do sol como ele só vendo. Pôs a língua para fora, esticou umas pequenas rugas que já se pronunciavam nos cantos externos dos olhos. É! Não estava mal.
Abriu a torneira. Com as mãos em forma de conchas levou a água ao rosto. Assim como a temperatura do ambiente a da água também estava nem quente e nem fria. Pensou novamente que assim é que deveria de ser.
Voltou para a sala. Jogou-se no sofá e ficou lá parado contemplando o pinheirinho . Era uma calma como nunca havia sentido. De repente percebeu que o silêncio era um bom companheiro. O silêncio não lhe dizia nada, mas também nada perguntava. Bom amigo o silêncio!
Ele buscou na memória uma outra ocasião em que havia ficado somente ele e o silêncio. Não lembrou. Também de que maneira? Cíntia era uma fábrica de ruídos. Falava o dia inteiro, não deixava um só detalhe de seu dia sem um relatório preciso. E ele – Alfredo – ouvia fingindo interesse. Se não era a fala era o aspirador, ou a maquina de lavar, ou a batedeira, ou a novela ou qualquer outra coisa, contanto que houvesse ruídos. Só hoje Alfredo percebeu: Ela devia amar os ruídos.
Passou-se muito tempo e Alfredo percebeu que não havia aberto as janelas e nem ascendido às luzes, as únicas luzes existentes eram as que piscavam a espera da noite de natal . Mas para que luz? Ele não tava fazendo nada. Se não havia necessidade de luz, para que ascender a luz? Manias estranhas nós temos pensou Alfredo.
Olhou para a TV. Ela estava muda. A última vez que ele havia visto aquela TV assim quietinha foi naquela sexta-feira em que faltou energia por uma noite toda. Ah! Que noite... Cíntia até hoje falava que nunca havia feito daquela maneira. Nem quando eram apenas namorados.
Cíntia? Onde andará Cíntia? Bom!... Deve estar no trabalho! Mas e ele? Não deveria estar no trabalho também?
De repente ouve ruídos no lado externo da porta. É uma chave. Só pode ser Cíntia. Somente os dois têm as chaves da casa. E além do mais os ruídos...
Cíntia entra.
Alfredo sorri e levanta para ir abraçar a esposa, mas ela passa por ele e vai para a cozinha. Alfredo sem entender nada vai atrás. Pede atenção, pergunta o que houve, mas ela nada responde. Ele então percebe que a esposa está chorando. Olha diretamente no rosto de Cíntia e percebe pelo inchaço dos olhos que ela estava chorando há muito tempo.
Alfredo implora para que ela pare e diga-lhe alguma coisa. O que houve? Porque ela chorava daquele jeito? O que ele tinha feito? Ele não entendia, estava tudo tão perfeito. Não sentia frio, nem calor, adorou o silêncio, não foi ao trabalho e não se sentia culpado por isso, e o que era melhor, não havia fumado um cigarro sequer.
Lembrou que nem fome tinha sentido quando viu Cíntia pegar os restos do sanduíche de cima da mesa e ir até a lixeira para jogá-lo fora.
Mas... Ele já havia feito aquilo...
Não fosse a falta de frio, Alfredo sentiria um frio correr pela sua espinha.
Ele agora começava a entender: Ele havia morrido.
Nenhum comentário:
Postar um comentário