terça-feira, janeiro 22

PERDA



Seu Getúlio empurrou o prato em silêncio e foi sentar-se também no mesmo silêncio no surrado sofá em frente à televisão. Procurou uma partida de futebol qualquer, e não achando ficou assistindo – ou quase... apenas olhava para a frente em direção ao vídeo sem ver nada – o final do capitulo de alguma novela. D. Esther recolheu os dois pratos sujos com os restos do jantar e o da filha que estava limpo como sempre estava desde o dia em que eles a perderam.
Depositou os sujos no fundo da cuba da pia e guardou o limpo como de costume. D. Esther sabia que o terceiro prato nunca mais seria usado, mas mesmo assim sempre o colocava na mesa, como fazia antes de perder sua filha.
Lavou os dois pratos pensando como seria bom se tivesse três para lavar! O trabalho seria maior, mas ao menos a filha ainda estaria entre eles! Assim que terminou com o segundo, ficou estática a olhar para os pequenos pingos de água que escorriam do prato e fugiam em direção ao ralo e, junto com os pingos de água fugiam também os pingos de lágrimas de seus cansados e sofridos olhos, assim como a filha fugira de suas vidas!
Mesmo o terceiro prato estando limpo, ela o pegou de dentro do armário e colocou embaixo da água que escorria da torneira e o lavou como se preciso fosse. Não era necessário, mas pouco importava, pois ao lavar o terceiro prato há muito não usado, dava-lhe a sensação de que ele também havia sido usado. Enganava-se conscientemente.
Seu Getúlio desviou os olhos que nada viam para ver a atitude que a pobre esposa toda noite fazia. Pensou em mandar ela para de fazer aquilo, mas não o fez! Voltou os seus olhos para continuar a não ver o que antes não estava vendo! Esperava que um dia a esposa fosse se conformar e parar de fingir que não havia perdido – assim como ele - a filha.
Após secar os pratos e os olhos, também sentou-se ao lado do marido em frente a TV e ficou também perdida sem nada ver. Para eles só havia um imenso vácuo que não permitia a eles verem nada, a não ser a falta de sua filha.
Ficariam assim os dois vendo o nada até o momento em que se retirariam para o quarto para dormirem junto com seus pesadelos, não fosse o zumbido da campainha que os acordou daquele sonho acordado.
A campainha feriu não só os ouvidos, mas também o coração de D. Esther! Seu Getúlio baixou o som da TV e dirigiu-se lentamente para a porta, como um gado que vai para o matadouro.
Seu Getúlio abriu a porta já sabendo quem veria! Na varanda, bem abaixo do velho lustre que ele havia instalado anos antes, estava Cleumar com seu gorro preto de sempre e uma jaqueta de couro surrada e totalmente aberta, que deixava aparecer na linha da cintura uma pistola calibre 6.5mm.
_ A Solânge? – falou Cleumar como se não houvesse ninguém a sua frente -. Cleumar estava foragido e desde então comandava o tráfico de drogas no bairro onde eles moravam.
_ Solânge!... – Gritou o pai virando de costas e deixando a porta aberta. Foi sentar para novamente continuar a não ver o que passava na TV. Solânge surgiu correndo dentro de uma mini-saia que mal lhe cabia e jogou-se ao pescoço de Cleumar. Beijou melosamente os grossos lábios dele e já ia fechando a porta quando D. Esther falou com uma voz débil:
_ Solânge... Leva um casaquinho minha filha! Tá frio!
_ Não encha o saco mãe! – respondeu ao fechar bruscamente a porta.
Seu Getúlio desligou a TV e foi dormir, D. Esther ainda ficou alguns minutos chorando em frente à TV desligada...Ela não conseguia se acostumar com a ideia de que havia perdido Solânge, sua única filha!

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