quinta-feira, agosto 4

Amor de Simão e Zinha


A manhã chegou ao povoado e junto dela a figura de Simão. Chegou de mansito em seu cavalo carvoado assim como seu cavaleiro. Os poucos que estavam na frente ao bolicho torceram o nariz como sempre torciam ao ver um forasteiro negro chegar ao povoado. Os negros de casa eram conhecidos e “até” respeitados, mas os de fora eram vistos como problema. Desde o fim da guerra eles andavam guaxos e arengueiros.
Além do mais, este veio com um lenço vermelho surrado que cobria quase toda a cara. _ Só bandido ou gente maleva esconde a cara!
Apeou e ajoujou o animal junto a um cinamomo bem em frente ao bolicho.
Ficou de frente a todos e levou a mão à cintura. Todos ficaram aboletados e prontos para responder a alguma toreada do recém chegado, mas ele só sacou uma flauta de taquara. Com a mão que estava livre, puxou o lenço colorado para baixo revelando a cara a todos.
_ Simão? – gritou Glorinha, moça negra que trabalhava na cozinha e estava trazendo uma linguiça assada para o regalo da clientela. A taquara tocou os grossos lábios do negro e produziu um som maravilhoso que fez com que todos ali presentes soubessem que era realmente Simão.
Logo após o acontecido em Poncho Verde, Simão sumira. Alguns davam conta que ele havia seguido Neto para o Uruguai, mas nada de muito certo.
Mas ali estava Simão. Ele era mui conhecido, pois era antes da incorporação aos Lanceiros Negros um simples mandalete do Capitão Fernandez, e que tinha certas regalias por tocar para muito gosto do patrão, melodias- que encantavam o dito – muito bonitas.
Todos ali já haviam escutado a cantoria que produzia aquele pedaço de taquara nos churrascos do Capitão. Ele – o galonado – orgulhava-se de ter em casa um escravo com dotes musicais.
Ninguém esperava ver o Simão de volta - Qual pássaro volta à gaiola após a fuga? -. Era sabido que a liberdade aos escravos incorporados aos farroupilhas era pura conversa.
Pois ali estava Simão. Tocou uma alegre melodia até perceber que os ânimos estavam acalmados. Recolheu a cintura o instrumento e mostrou as canjicas num longo e frouxo sorriso.
_ Mas então de onde vens o vivente? – perguntou um e foi o mote para Simão entrar em contato com as gentes que ali se encontravam. Perguntaram por histórias e contaram outras e Simão foi-se aboletando com eles no bolicho.
Depois de tantos causos, Simão puxou da m ala de garupa que o acompanhava algumas patacas e pediu uma canha. Foi servida, e todos os outros se serviram a suas próprias expeças de mais algumas.
Assim como a cana corria, a notícia da chegada de Simão correu à casa do Capitão Fernandez que logo resolveu ir tomar satisfações do negro fujão que abandonara seus serviços para seguir os revoltosos.
Tonho, o filho do Capitão, chamou o pai e segredou que na batalha em que ele fora ferido por uma lança Farroupilha, só não morreu pela intervenção de Simão.,.
_ ... ele recolheu-me para um capão e cuidou de minhas feridas e só depois de me ver em condições de voltar para casa, voltou para os revoltosos! – O velho Fernandez não ficou feliz em saber que seu único filho foi salvo pelo inimigo, mas ao mesmo tempo sentiu-se agradecido, pois além de Tonho, só tinha mais uma guria, a Terezinha, e era Tonho que deveria seguir a tradição da família. Tradição de grandes guerreiros e conquistadores. E se ele estava vivo era pela ajuda de Simão.
No bolicho os olhos e ouvidos estavam presos aos relatos do negro Simão...
_ e vai que o General Bento pega de sua espada e... – parou o relato ao ver que todos viraram os olhares para o lado da porta de entrada.
Era o Capitão e seu filho que chegavam! Ficaram todos parados como gambás ao receber uma paulada.
_ Ô Simão – correu Tonho ao encontro do negro e deu um abraço, cochichando para ele – não fala do ferimento da guerra.
_ Sinhô Tonho! Esse foi o macho taura que salvou a minha vida na guerra – mentiu em voz alta para todos Simão -, não fosse a fibra dos Fernandez, eu hoje seria alma penada a vagar em busca de salvação!
Ao ouvir a declaração do negro, todos erguerem seus copos dando vivas a bravura – mentirosa – do filho do Capitão.
_”Putcha!”... Esse é Fernandez mesmo! Não esquece um amigo nem na refrega! – gritou um gaiato.
_ E é assim mesmo! – trovejou a voz do Capitão Fernandez – Um Fernandez nunca esquece um amigo. – fuzilou um olhar a Simão – E mande logo uma rodada de canha pra todos em festejo pela volta de Simão.
A noite foi longa. Correu trova e canha até não mais.
Raiando o dia, Capitão Fernandez mais pelo efeito da maldita que pela bondade ofereceu a Simão: Se aboleta lá no galpão da fazenda. Amanhã teremos um churrasco dos buenos, que é aniversário de Terezinha!
Simão que nem atinava mais, para o bem ou para o mal, queria mais era deitar o pelego. Foi.
Simão acordou jogado sobre umas enxergas fedorentas. Olhou e viu que estava no velho galpão que dormia antes de se meter na guerra. Tudo era muito conhecido dele, menos o alarido que vinha de fora.
Se aprumou e saiu. Todos corriam para preparar uma grande festa. Só então veio em sua memória o aniversário da filha do capitão. Simão buscou na memória a imagem de Terezinha e lembrou de uma guriazinha magra como rancho de peão e embestada como mulher de Coronel que ele cuidava antes das refregas e muito deu suas costas pra brinquedo de montaria.
Meteu-se no meio dos azucrinados que corriam pra lá e pra cá e sentou-se num banco.
_Mas então ta de “valde” porque? – ouviu uma voz angelical em suas costas. Virou-se e viu a “cousa” mais linda de sua vida. Uma chinoca de cabelos torcidos por mãos de anjos e um olhar perigoso de mel pintado por demômios que atraia qualquer desavisado para uma ferroada.
_”Discurpe”! To atrapalhando? – perguntou vexado e recém e logo apaixonado. Simão pensou que se havia céu ele deveria ser povoado por anjos iguais ao que via em sua frente.
_ Simão? És tu?
_ Sim! Simão sou eu!
_ Zinha! Sou eu! Zinha! – abriu os braços em forma de cruz - . Não lembra da Terezinha?
O miolo do negro Simão fez voltas e viu a pequena Zinha que galopava em suas costas a brincar de cavalo de guerra e que cuidava dela quando ia tomar banho de rio.
Ao lembrar do banho de rio, Simão ficou com a cara encarnada. Era apenas uma menininha de oito ou dez anos, mas agora em sua frente estava uma linda mulher que qualquer um iria querer colocar na garupa e levar embora.
Foi abraçado e ficou mais abrazado ainda. Antes era uma menininha que nem cabelinho nas partes tinha, agora era um mulherão, mesmo que pouca idade tivesse.
Fugiu do abraço e se recompôs.
_Dona Zinha! – tentou uma voz respeitadora – mas então estás de aniversário?
_Ah! Bobão! Eu sei que tu não esquecerias! – sentou-se aos pés de Simão – Rezei muito para que tu viesses para meu aniversário! Sem meu amigo Simão não teria graça alguma!
Simão pouco ouvia, em sua cabeça estava a pergunta: como poderia um raminho tão pequenito virar uma linda flor em tão pouco tempo? – há se os banhos de rio fossem hoje...
_ Venha! Vamos ver os preparativos... – Terezinha levou o negro Simão pela mão para ver o que estava sendo feito para o seu aniversário. Mostrou as mesas, os doces, os mimos, o palco dos músicos e tudo o mais.
Simão se viu observado por olhos que não eram de boa amizade e nem de bom pensamento. Não era burro. Estava mui íntimo da aniversariante e tratou de se afastar.
_ Zinha... Tenho “cousas” a fazer! Depois eu volto – inventou para se afastar.
_ Tudo bem! Mas volte para a festa! – convidou quase que ordenando com seu sorriso juvenil.
Simão voltou para a vila sabendo que não deveria voltar – quando o tinhoso chama é hora de fugir - . Entrou no bolicho e pediu uma canha.
Tomou várias. Comeu lingüiça. Bebeu mais. Mijou na parede do lado de fora. Bebeu mais.
_ Vou embora! – tomou a decisão. Pagou o estrago e montou em seu também negro cavalo. As chilenas mal cutucaram e já estava a galope.
Vai que cruzou por um roseiral todo vermelho e Simão viu lá no meio uma rosa branca. Uma única rosa branca em meio as vermelhas! Frenou o pingo. Nunca vi só uma rosa branca no meio de tanta vermelha – diz para si o ginete -. Apeou e colheu a única branca.
Não atinando muito, deu volta e foi em direção à fazenda do Capitão Fernandez.
Chegou em meio à festa bem no momento em que o Capitão Fernandez ia chamar o “parabéns a você”. O flete de Simão parou bem em frente à mesa de Terezinha.
_D. Zinha – disse sem pensar Simão – estou indo embora para nem sei onde, mas fique com esta flor que demonstra todo meu amor! – Terezinha pegou a rosa branca contra o peito e com a outra mão – e um sorriso de orelha a orelha - grudou a mão do ginete dizendo: _ Só a aceito se junto for com quem ela me oferta!
Boa amazona que era, ela pulou com a ajuda de Simão para a garupa. O cavalo escarvou o chão e saiu em fuga.
Capitão Fernandez surpreso, desesperado e em meio à raiva, puxou seu moderno revolver de seis tiros e disparou e só então percebeu o seu desatino. Um de seus tiros podia ferir a própria filha!
Vendo o patrão disparar, todos os seus mandados sacaram de suas armas e também abriram fogo.
Foi um trovejar medonho! O ar encheu-se de pólvora, estampidos e gritos.
_ Cessar fogo! – gritou o Capitão. Mas já era tarde a ordem. Terezinha soltou a cintura de Simão e caiu para o lado. O corpo da moça tombou de bruços ao mesmo tempo em que os freios do cavalo foram puxados pelas fortes mãos do negro.
O cavalo parou e Simão pulou de pronto. Olhou o corpo de Zinha estirado ao solo e correu para ela.
Nem bem se acocorou junto ao corpo inerte e levou um tiro em pleno peito. Caiu para trás e antes de conseguir levantar-se estava cercado de peões armados até os dentes. Tentou chegar até Terezinha, mas foi alvejado por dezenas de tiros e estocadas de facões e lanças.
O Capitão chegou correndo e abriu-se o cerco. No centro estava o corpo de Simão todo esburacado e pintado de vermelho. A poucos passos dele estava como que adormecida sua filha deitada de bruços com as mãos escondidas junto ao peito.
O corpo da pobre foi erguido pelo pai e das mãos dela caiu uma rosa branca. Do vestido branco verteu uma grossa gota de sangue e pintalgou as pétalas brancas de vermelho.
As lágrimas do Capitão banharam os cabelos da filha e escorreram sobre as pétalas brancas pintadas de sangue.
O pai pegou o corpo sem vida da filha no colo e antes de voltar com ela para o local onde antes era festejado o aniversário de Terezinha, esmagou a rosa sangrenta com a sola da enorme bota em meio a um grito de raiva, pesar e dor.
Os peões ao verem o exemplo do comandante ficaram a sapatear a rosa já amassada contra o chão verde de grama, vermelho de sangue e molhado de lágrimas.
O corpo de Simão foi também sapateado até ficar todo desfigurado. Não foi enterrado, seu corpo foi jogado num fundo de capão e ali ficou até ser todo consumido pelo tempo e por animais carniceiros.
Logo após ser feito o enterro de sua filha, o Capitão Tavares mandou cercar o capão onde fora jogado o corpo do negro Simão e proibiu todos de ali entrar. Seria a partir daquele dia um local maldito.
E maldita também ficou a consciência do Capitão, e numa noite os cães vadios que circundavam a casa da fazenda alertaram para seu corpo dependurado pelo pescoço bem no meio do capão que ele mandara cercar.
No dia em que recolheram o corpo do Capitão ao Campo Santo uma negra da casa percebeu um roseiral que floria bem onde a rosa branca havia sido destroçada pelo Capitão e seus peões tempos antes. O fato seria até despercebido não fosse pela coloração das rosas que ali floriam: Todas brancas manchadas de vermelho.
Para o acontecido ser esquecido, o roseiral foi logo ceifado a facão e junto com o seu sumiço, sumiu a história da morte de Terezinha, Simão e do Capitão Fernandez, não fosse dez anos após, a propriedade ser vendida para um novo estancieiro, que mandou retirar a cerca que proibia a entrada das gentes ao capão que serviu de mortalha ao apaixonado Simão.
Fato foi que ao chegarem ao local onde putrefou e consumiu-se o corpo de Simão, vingava um roseiral com um único botão.
Botão branco pintalgado de vermelho!



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