quinta-feira, março 17

O “estranho professor Mário”


Toda a cidade sabia que o professor Mário era estranho. Lembro que uma das primeiras coisas que meus ouvidos de menino ouviram foi: O professor Mário é estranho.
Ele sempre saía de casa bem cedo com um livro debaixo do braço e ia comprar pão e leite. Ora, por que raios alguém levava um livro até a padaria se não iria ler. Na igreja, aos domingos ele sempre chegava acompanhado de sua esposa, dona Beatriz e logo ao fazer o sinal da cruz, separava-se da esposa e ficava a missa toda ajoelhado na última bancada da esquerda, só se levantava para tomara a comunhão e voltava a ajoelhar-se, só que após a comunhão ele ficava na última bancada da direita. Ele tinha algumas manias desse tipo que lhe deram a alcunha de “o estranho professor Mário”.
Lembro que outra coisa que falavam sobre o “estranho professor Mário” era o fato de ele haver casado com a mulher mais bonita e cobiçada da cidade. Uns diziam que ela só casou com ele porque quando a mãe dela morreu, ela não tinha mais ninguém no mundo, outros falavam que talvez ele tivesse certos predicados que enlouquecia a jovem Beatriz.
Bem se era por amor que ela casou a cidade inteira já sabia que esse amor não existia mais, pois fazia meses que ela era vista com Paulo, o marceneiro para baixo e para cima. Se ela ia ao supermercado podia saber que lá no meio das gôndolas estaria ele. Quando ela adquiriu o costume de ir no meio da tarde ao cinema, como se fosse coincidência ele também começou a ter interesse por filmes. Drama, comédia, musical... não importava o gênero, eles iam quase todas as tardes ao cinema.
O “estranho professor Mário” que já era cabisbaixo ficou mais abatido ainda, e depois da escola ficava vagando até tarde pela cidade, era a certeza que a cidade procurava de que ele também sabia o que estava acontecendo.
Numa tarde de quarta feira, na hora do recreio, o diretor Maurício levantou-se para atender o telefone da sala dos professores. _É pra você Mário! Falou. _Quem é? - perguntou sem tirar os olhos de seus cadernos de chamada.
_ É sua esposa! – todos olharam ao mesmo tempo para o diretor e para o telefone que estava em sua mão. Depois os mesmos olhares direcionaram-se para a cara petrificada do “estranho professor Mário”. Ele levantou-se vagarosamente e pegou o telefone. Ele olhou para aquela dezena de pares de olhos que lhe fitavam. Eles desviaram-se, mas os corpos permaneceram no mesmo lugar. Não arredariam pé dali, queriam saber o que ele iria falar ao telefone.
_ Alô... Sim? Algum problema querida? – pausa – _Quê? – pausa – _Como assim? – uma pausa maior – _Não podemos falar disso depois, quando eu... – nova pausa – _Mas... – Agora a pausa foi muito maior. Um mal estar pairou no ar em meio a poucos sorrisinhos. _Mas vocês irão para onde? Porque isso Beatriz?
O diretor Maurício fez um “rã...rã” como se estivesse limpando a garganta mas era um pedido para que parassem de escutar a conversa do “estranho professor Mário” com a esposa. Não adiantou!
_ Espera não vai agora! Não! Espere eu ir até ai... esper... – ele afastou o fone do ouvido. Todos perceberam que ela havia desligado. O “estranho professor Mário” depositou o fone no gancho e voltou para sua cadeira. Depois de uns bons minutos ele ergueu-se e disse que tinha de ir em casa. Nem esperou a resposta do diretor e saiu correndo porta afora.
O que ocorreu na sala dos professores eu sei por que minha madrinha é professora e estava lá e contou tudo para minha mãe, sem saber que eu estava próximo. Talvez as palavras ditas por ele não tenham sido exatamente assim, mas é assim que lembro ouvir ela contar.
Naquele dia o “estranho professor Mário” não foi mais visto. No outro dia pela manhã já foi visto na padaria com o livro debaixo do braço, mas desta vez ele comprou a metade dos pãezinhos que sempre comprava e não comprou leite. Como a maioria das pessoas sabiam que ele não suportava leite só podia ser uma coisa: A esposa fora embora.
A dúvida não durou muito, pois logo perceberam que a marcenaria do Paulo não abrira aquele dia e nem no anterior. Dois dias após alguém mais por curiosidade do que por preocupação falou para o delegado que alguém deveria arrombar a marcenaria. _ Vá que o Paulo tenha tido um treco lá dentro e... – assim fizeram.
Não havia ninguém lá dentro. Estava tudo impecavelmente organizado e em cima de uma escrivaninha um envelope escrito à máquina “aos cuidados da Imobiliária Souza”. O delegado levou o envelope até a imobiliária, mas obrigou que o mesmo fosse aberto na sua frente. Dentro do envelope havia dinheiro e era exatamente o valor do aluguel do último mês. Não havia dúvida, os amantes haviam fugido.
O “estranho professor Mário” passou a ser mais observado do que já era. O povo não consegue ficar apático a uma guampa. A rotina dele não mudou em nada, a não ser que agora ele ia sozinho a igreja aos domingos e quase nunca ajoelhava. Segundo diziam após aquele acontecimento ele nunca mais tomou a eucaristia.
Nunca entendi que fascínio o “estranho professor Mário” causava em mim. Comecei a segui-lo pela cidade e anotar cuidadosamente as coisas que ele fazia. Adorava aquilo, me sentia como um detetive de filmes americanos, mas no terceiro dia percebi que as anotações eram iguais as dos dois dias anteriores. Ele sempre fazia à mesma coisa.
Um dia decidi sentar a seu lado na praça e puxar assunto. Não lembro que amenidade lhe perguntei, só sei que ele me olhou com um olhar morto e foi embora sem nada dizer.
No domingo pela manhã sentei ao seu lado na igreja, ele me olhou com o mesmo olhar morto e foi sentar em outra bancada vazia bem longe de mim. Percebendo que não haveria como entrar naquela cabeça misteriosa eu desisti.
Passaram alguns meses e o “estranho professor Mário” continuou sendo apenas o “estranho professor Mário” para nossa cidade.
Eu perderia para sempre o interesse naquela figura não fosse um dia eu estar entediado no supermercado e passar por mim o “estranho professor Mário” com quatro pacotes de canudos plásticos para refrigerantes em seu cestinho de compras. Se ele vivia sozinho para que tantos canudinhos? Festa de aniversário de alguém da família não podia ser, pois ele não tinha ninguém.
Intrigado, resolvi segui-lo. Ele foi até sua casa e entrou pela porta da frente. Parei a alguns poucos metros escondido atrás de uma árvore. Já estava escurecendo e a luz apareceu por trás dos vidros de uma janela. Pulei o baixo muro de tijolos pintados e agachei-me bem abaixo da janela de onde vinha à luz.
Apurei o ouvido e escutei o som de um liquidificador. Com o coração aos pulos me ergui e espiei pela janela. Ele estava de costas e preparava um shake avermelhado que julguei ser de morango. Desligou o aparelho e colocou o líquido não muito espesso em um grande copo plástico. Abriu um dos pacotes de canudos e colocou um deles no copo. Pegou o copo e virou-se. Abaixei-me com o coração quase a sair pela boca.
Percebi a luz ser apagada. Pouco tempo depois um pequeno facho de luz iluminou meu joelho. Busquei a origem daquela luz e vi que vinha de uma janela baixa de vidro que devia ser de um porão. Com mais cuidado notei que o vidro havia sido pintado de preto por fora e o pequeno facho fugia por um leve descascado na pintura.
Deitei-me no chão e espiei. Via apenas uma lâmpada pendente e uma parede cinza, além de umas prateleiras com livros. Procurei ver mais, mas a única novidade era à sombra de um homem que sabia ser do “estranho professor Mário” a projetar-se na parede.
Procurei no chão e encontrei uma pedrinha pontiaguda. Aumentei o descascado com pouca dificuldade e espiei novamente. Agora dava para ver uma cama com um cobertor entrouxado sobre um sujo e surrado lençol. Súbito, puder ver o “estranho professor Mário” aproximar-se da cama. Dava para saber que era ele pelas roupas, pois não dava para divisar o rosto.
Busquei novamente o auxílio da pedra e aumentei o descascado no vidro. Espiei e vi um enorme aquário com um líquido esverdeado e com a parte de cima lacrada com uma placa de vidro com algo que parecia ser um tipo de cola ou silicone. Dentro do aquário havia algo que não dava para saber o que era, pois a luz era pouca.
De repente percebi que o “estranho professor Mário” falava algo, mas não dava para ouvir direito. Ele pegou o copo plástico que estava em uma pequena mesinha e com a outra mão puxou o cobertor com força. Uma ponta do cobertor bateu na lâmpada que começou a balançar e iluminar rapidamente alguns cantos no porão que antes não havia claridade suficiente. Procurei seguir o facho que balançava para melhor explorar o porão quando meus olhos perceberam que dentro do aquário havia o corpo como se fosse um feto gigante.
Apesar do susto pensei que podia ser uma trapaça de meus olhos devido ao diminuto campo de visão e o movimento da lâmpada. Continuei a seguir a luz. Quando meu olhar passou pela cama vi uma mulher nua presa a tiras de couro. O “estranho professor Mário” levou o copo em direção ao rosto da mulher e cuidadosamente direcionou o canudo para que fosse introduzido nos lábios de uma magra e pálida dona Beatriz.
Ela tinha dificuldades para aceitar o canudo. Forcei a visão e percebi que ela tinha as órbitas dos olhos vazias e os lábios estavam costurados com uma grosseira linha preta. Virei o rosto apavorado sentindo uma corrente gelada percorrer minha espinha e eriçar não só meus pelos, mas também os cabelos. Cobri a boca para abafar um gemido de pavor. Se era dona Beatriz então no aquário só podia ser o amante.
Então naquele dia ele chegou a tempo de impedir a fuga dos dois! E o envelope na marcenaria era obra dele também! - percebi.
Busquei coragem e virei-me para olhar novamente e averiguar se eram realmente eles. Levei o olho em direção ao descascado na pintura do vidro e dei de cara com o morto olhar do “estranho professor Mário” me fitando.

Um comentário:

Bárbara disse...

Minha imaginação me levou a pequena cidadezinha, e depois às paredes descascadas cor bege da casa do Prof. Mário, com o vidro fumê também descascado. Me vi numa cena de mistério finalizada por terror. A história do estranho professor Mário deveria virar filme. Tuas crônicas sempre tem um elemento surpresa maravilhoso que nos faz ficar com cara de "óó"... É realmente maravilhoso. E digo isso com toda sinceridade, meu amigo... Pudera eu escrever assim!!! Sou tua fã número 1! Milhões de beijos!! Muita saudade, meu muso lalau!