quinta-feira, novembro 4

O OURO DO AMOR


Desde muito moço ele foi instruído nas artes, na religião, nas lógicas do ocultismo e nas loucuras da ciência. Não renunciou o Deus natural, mas esqueceu o Deus criado a semelhança do homem. Aventurou-se pelos caminhos da alquimia. Tencionava transformar as matérias mais simples e paupérrimas na complexa e cobiçada matéria batizada pelos homens com o nome de ouro. Viveu os melhores dias de sua juventude entre tratados e discussões, pipetas e frascos, metais e ácidos, pensamentos e escritos, sono e insônia, adulações e ojeriza, observações e dissecações, erros e acertos até os dias – e noites, muitas noites - comerem-lhe o viço.
Já cansado - o corpo mas não o espírito -, velho – de corpo mas não de espírito – e pobre – de matéria mas não de espírito – recolheu-se a uma pobre choupana oferecida por um primo próspero no interior - mais por vergonha para tira-lo dos olhares dos confrades do que por bondade – , e por não ter mais força física que aparelhasse com seu hercúleo pensar, viu-se obrigado a dispor do auxílio de uma empregada.
Hertha, uma cinquentona fastidiosa para as coisa da carne e buliçosa para os afazeres domésticos veio habitar um quartinho nos fundos da pobre casa. Apesar da falta de instrução ela tornou-se uma grande ajudante em seus estudos além de manter o casebre limpo, organizado e aquecido.
O mundo obtuso e reduzido dela logo foi sendo edificado pelos conhecimentos e palavras estranhas daquele homem, ao mesmo tempo em que o mundo aberto e infinito dele começou a ficar embebido pela imagem daquela mulher que alem de fazer o que as mulheres faziam tinha uma curiosidade – até então para ele: coisa de homem. Poucos homens – pelo oculto e a ciência.
Os vinte anos que os separavam fez com que ela tivesse de auxilia-lo a fazer a barba, seca-lo após o banho e corrigir os botões da casaca em suas respectivas casas. Este contato – até então proibidos para seu recato – aumentaram sua adoração pelo patrão.
As mesmas duas décadas e os cuidados de Hertha, fizeram pela primeira vez os olhos atentos aos mistérios da física e do oculto, a anatomia dos corpos dissecados e das formações rochosas, aos movimentos das marés e dos astros a perceberem os mistérios, formas e movimentos daquele corpo virgem de meio século.
No segundo inverno que ela residia com ele, uma noite deixou de ser a cena das bruxas e demônios para dar guarida ao cupido. Cupido que veio em forma de uma violenta chuva com ventos piores ainda.
O parco telhado do quartinho de Hertha voou como se mariposa fosse e ela teve de buscar abrigo nos aposentos do velho patrão. O frio e os anos de libido represado os uniu. O vento e a chuva já estavam a inúmeras léguas de distancia e seus corpos ainda buscavam proteção um ao outro.
Desde aquela noite, uma chuva e um vento imaginário enxota Hertha a procurar a guarida do velho alquimista que deixou de querer transformar tudo em ouro, e descobriu o segredo de transformar carne e sentimentos em prazer e amor.

Um comentário:

Bárbara disse...

Nossa, que bonito isso!
A crônica começa com um alquimista que almeja transformar coisas em ouro, enfim, por um acaso da natureza, ele descobre a verdadeira e única riqueza que ele poderia ter: AMOR.
Conheço tantas pessoas que são assim. Passam a vida almejando tantas coisas, e no fim descobrem que aquelas coisas eram tão fulgazes e vazias, e que o que realmente importava eles poderiam ter, mas desperdiçaram em sua busca infinita por algo "mais". Ainda bem que o seu alquimista ainda teve a chance de descobrir isso antes que fosse tarde demais. De desistir da busca inútil para se entregar ao ouro de verdade. Muitos não têm esta sorte. Amei essa crônica, lalau. Realmente me fez refletir. beijos grandes cheios de saudade!