quinta-feira, abril 1

Herdeiro do Continente Solidão


O ar era quase água. A fina e teimosa chuva cedera, mas uma neblina branca e gelada permanecia. Vladimir - o caçula do Coronel Pimentel -, estava moído e molhado após uma noite acantonado no pequeno capão. Eles - os homens -, estavam impacientes assim como os cavalos. A aba do chapéu de couro surrado em pouco ajudava. A água escorria olho adentro do noviço cavaleiro, mas mesmo assim, dava para ver ao longe o exército imperial em formação.
Vladimir em seu jovem cavalo sentia-se – mesmo com medo -, protegido em meio a tantos homens corajosos e calejados em dezenas de peleias. Ao seu lado, estava Juvenal – peão que o Coronel Pimentel mandara achando que o filho não sabia para ficar de olho no caçula – montado em um tordilho veterano de guerra. Mesmo em meio a tantos homens – alguns conhecidos – e ao lado de Juvenal, Vladimir sentia-se sozinho.
Na fazenda do pai, desde a mais tenra idade, sempre se sentira sozinho. Os guris que brincavam com ele estavam sempre distantes como sempre ficam distantes as classes ditas inferiores em frente às ditas superiores. Eles não o viam como um amigo e sim como o filho do patrão.
Um silêncio caiu sobre os cavalos e cavaleiros. Vladimir percebeu que o General Neto devia ter chegado. Aquele silêncio era sinal de respeito ao famoso guerreiro que Vladimir admirava sem nunca ter visto pessoalmente, mas já ouvira o suficiente para reverenciar. E em sua cabeça ele – o General – era um gigante que cavalgava um alvo e portentoso titã.
A sua frente cruzou algo com uma forma mais humana, mas que não desgostou Vladimir. Aquele sereno olhar transmitia segurança e seduzia qualquer companheiro de armas.
Sim! Era o General. Ninguém precisava apresentar, pois ele tinha aquele olhar de quem manda. Apesar de ser um oficial, suas roupas em pouco se diferenciavam dos demais. O uniforme azul estava todo em frangalhos e bastante sujo.
Vladimir teve seu olhar roubado da imagem do General para o movimento que surgiu nas tropas inimigas. Percebeu que elas não estavam mais paradas, mas vinham em sua direção. Seu olhar novamente foi roubado por outro movimento, era a mão de Neto que corria dos arreios ao punho da espada.
Todos os cavaleiros em sua volta retesaram-se. Alguns mostravam na face preocupação enquanto outros – a maioria – esboçavam um sorriso de contentamento.
A espada do general saiu da bainha e apontou para o alto e baixou em direção dos inimigos ao grito de: _Carga!
Em meio a relinchos, sapucais e terra escavada por cascos nervosos, Vladimir ficou sozinho. Não sabia o que fazer e só não foi atropelado pelos cavaleiros que estavam em sua retaguarda porque a mão forte de Juvenal - assim como a espada de Neto - baixou na anca de sua montaria.
O cavalo, mesmo jovem e não acostumado com uma carga de cavalaria, ao sentir uma palmada jogou-se em disparada. Não era guiado. Ia apenas junto com os outros cavalos, pois não queria sentir-se sozinho como se sentia sozinho, o sozinho Vladimir.
A sua frente ia muitos ginetes com as armas em punho. Não divisava o inimigo. Logo começou a ouvir o pipocar de tiros e só então percebeu que poderia estar indo para a morte. A visão começou ficar turva pelos pingos da chuva, que agora eram mais severos, pois seu chapéu voara sabe-se lá para onde, e pelo desespero, e não pelo medo de morrer, mas por estar ali sozinho, esporeou sua montaria para ficar perto dos outros guerreiros.
Com o galope, seu corpo começou a tender para a direita. Estava acostumado a passeios a cavalo, mas nunca em um galope desenfreado como aquele. Tentou equilibrar-se, mas não conseguia. Iria ao chão e morreria sob os casco de vários cavalos não fosse o ombro de Juvenal, sempre zeloso que o endireitou sobre a cela.
Agora já dono de sua montaria virou para agradecer Juvenal. Gritou algo para Juvenal que nem ele sabe o que foi. Juvenal deu aquele sorriso de velho cão amigo e jogou a cabeça para trás. Quando a cabeça do amigo e velho empregado de seu pai voltou para frente, havia um buraco entre os olhos de cão amigo que jorrava um sangue vermelho escuro, mas os olhos já não viam nada.
Juvenal tombou sobre o pescoço do cavalo e deslizou lentamente até encontrar o chão coberto de geada e terra escavada e foi surrado pelas patas dos cavalos que vinham atrás.
Vladimir sentiu-se novamente sozinho, e ficaria ali horrorizado com a cena que havia presenciado não fosse os sons que o acordaram de seu devaneio.
Gritos de dor e sapucais. Relinchos e baques secos de peitos de cavalos a chocarem-se com os de outros. Tiros e tilintares de espadas, facas e facões. Barulhos secos de lanças quebrando-se no peito de cavaleiros e cavalos.
Por instinto ou por medo Vladimir sacou a espada da cintura. Ao ver a presença de um soldado imperial em sua frente, golpeou. Ouviu um gemido e sua espada caiu junto com o soldado ferido ou morto que a tinha cravada ao peito.
Seu cavalo, neófito a guerras assim como ele procurou afastar-se da refrega. Uma espada quase cortou-lhe o peito não fosse a fuga de sua montaria em busca de lugar seguro.
Aos poucos Vladimir saiu do meio da turba e postou-se ao lado dos cavaleiros que se debatiam feito loucos. Sua primeira intenção era fugir, mas lembrara-se das palavras do Coronel Pimentel, seu pai, dizendo que nunca sua família fugiu de uma luta e tomado de uma motivação insana, sacou da garrucha que trazia na cintura e deu dois disparos.
Vê um imperial cair do cavalo, mas não tem certeza se foi por causa de seus tiros. Uma lança cruza a poucos palmos de seu peito. Ele esporeia seu jovem cavalo e vai ao encontro da refrega. Não tem o que fazer, sabe que está sozinho.
Está sem espada e com a garrucha descarregada. Jogou-se da cela sobre o primeiro soldado que encontrou. Agarrou-se ao soldado e o derrubou de sua montaria. Caiu no chão ao lado do inimigo. Desesperadamente levantou-se e percebeu que o homem que ele derrubou caíra sobre a própria espada, que atravessou o próprio tronco do inimigo.
Virou-se e recebeu um pontapé de um cavalariano imperial no rosto. Deu um giro e caiu de rosto na água pardacenta que se juntou no baixio e começou e ficar avermelhada na mesma proporção que caia os corpos.
Ao entrar por sua garganta uma água batizada com sangue, pensa: esse deve ser o batismo de fogo que meus ancestrais queriam!.
Firmou a mão esquerda no solo barrento para erguer o corpo, quando uma dor lancinante partiu da mão até seu cérebro e transformou-se num urro agonizante.
A pata de um cavalo do seu próprio exército – se é que se pode chamar assim um grupamento esfarrapado como o deles – pisou em sua mão esquerda. Sentiu as falanges e falangetas quebrarem-se como pequenos gravetos utilizados para começar o fogo de um churrasco.
A custo conseguiu desenterrar a mão quebrada do meio do barro. A camada de barro escondeu um pouco o estrago, mas percebeu que seus dedos não estavam na posição que deveriam estar.
Ergueu-se, mas não a tempo de ser surpreendido pelo imperial que saltou como uma fera selvagem sobre seu corpo já bastante ferido.
Conseguiu erguer-se antes de seu agressor. Viu uma espada que boiava por ter o punho de madeira e apoderou-se dela. Quando seu atacante tentou erguer-se, desferiu a lâmina da espada circularmente e cortou o ventre inimigo que não teve tempo nem de tentar segurar as entranhas que caiam na água como se fossem peixes procurando a salvação.
Olhou para todos os lados e tudo era barbárie. Sem dúvida não havia nascido para aquilo ali. Preferia os poucos livros da fazenda e a música do galpão, mas agora não tinha mais escolha: era matar ou morrer.
Mesmo tendo vivido sempre sozinho, preferia a vida que morrer em meio a tanta gente. Saiu correndo do meio daquele lodaçal e foi postar-se num local mais elevado.
Era um local seco mas, já estava ocupado por um soldado imperial. Que vendo Vladimir correndo para seu posto fez rapidamente a mira.
Abaixou-se a tempo de ouvir o estampido e sentir um deslocamento de ar pentear seus cabelos.
Por extinto de sobrevivência ou por herança de seus ancestrais, jogou-se no chão ao mesmo tempo em que varava o abdômen do atirador.
Galgou o local seco onde antes estava sua vitima e ficou em posição de defesa.
Viu o General Neto cruzar a toda brida seguido de muitos cavaleiros. Entendeu: perdemos esta batalha, tenho de me juntar aos meus para nos organizarmos para a outra batalha. Já pensava como um guerreiro mesmo sem perceber. Já estava batizado. Mas ainda estava só!
Os imperiais ao verem os farrapos fugirem foram em em encalço mas, uns cinco soldados que perderam os cavalos viram Vladimir no cimo do morro.
Os que não estavam armados procuraram no chão alguma espada e vieram em sua direção.
Vladimir se viu sozinho. Vivera sozinho a vida toda e aquilo não o espantou. Soltou um estupendo sapucaí e correu para o inimigo.
A superioridade em numero não valeu de nada. Em poucos minutos estava Vladimir com sua espada empapada em sangue circundado por cinco imperiais mortos.
Vladimir não se sentia herói.
Vladimir olhou para os lados e ainda estava só!
Ele realmente era um dos herdeiros do Continente Solidão.

2 comentários:

Humberto Orcy da Silva disse...

Cuiudo cara. Fiquei impressionado com a qualidade da escrita neste conto.

Bárbara disse...

PUTAQUEOPARIU.
Vamos lançar um livro com esse escritor e meu muso particular.
Inexplicável esse conto.
O melhor de todos s tempos.
Tu é o cara!