terça-feira, abril 20

Eu e a mana


Será que se morre sozinha?
Não sei! Só sei que não se nasce sozinha!
Normalmente tem um monte de gente de branco a nossa volta.
Sim! Mas às vezes não há os de branco, há apenas uma parteira e em alguns casos nem ela. Mas mesmo assim não estamos sozinhas, pois há a mãe, portanto ninguém nasce sozinha.
Quando vim ao mundo não havia ninguém além de mamãe. Mas mamãe sem o amparo de ninguém morreu.
Mas não fiquei só, pois poucos segundos antes havia nascido minha irmã e mesmo assim havia papai, que é bem verdade não estava ali, mas era carne de minha carne e portanto não estaríamos sozinhas.
Poucos dias após papai que nunca fora muito valente e era meio complicado das idéias, e que além de tudo havia sido marinheiro e, conhecia tudo de nós, colocou um bem forte em torno de seu pescoço no momento em que enfeitou com seu corpo balançante o abacateiro lá no quintal de casa.
Tia Nara, não por devoção, mas por ser a única pessoa que sobrou além de nós – eu e a mana – daquela família “kamicaze” ficou com a nossa guarda.
Ela fez tudo o que podia ter feito. O que esperar de uma pessoa que nasceu para ser triste e tia? De uma pessoa que tinha como hobby criar codornas? Não para ganhar dinheiro, mas só porque lhe disseram que as pobres avezinhas , apesar de botarem muitos ovos não conseguiam choca-los, pois haviam perdido o instinto de chocar, assim como ela!
Fomos para a escola - eu e a mana – e éramos boas alunas, mas sofríamos com brincadeiras inocentes e cruéis dos colegas, falando que nós havíamos matado nossa família.
Um dia, lá pela sexta série, pulou da ponte para a morte a professora Sofia, após descobrir que estava grávida de um viajante. O pessoal da escola começou a dizer que ela havia morrido por nossa causa - eu e a mana - .
Não liguei e continuei meus estudos, mas minha irmã nunca mais voltou a estudar. Por mais que tentássemos, ela não teve coragem de retornar a escola. Não verdade a mana ficou meio doidinha.
No dia de minha formatura, tive só a presença de tia Nara. Minha mana não veio, pois não saia de casa nunca.
Matriculei-me no curso de enfermagem, não era algo que queria ser, mas com uma família daquele jeito era o mais útil a fazer.
Fui a melhor aluna da classe, mas era tratada como um “ET” não só pelos colegas, mas também pelos professores. Parecia que eu tinha escrito na testa “danger”.
Veio o fim de ano. Fui aprovada com a melhor nota, mas ninguém pareceu notar ou quis comentar. Corri para o banheiro e chorei por mais de meia hora. Foi uma sensação boa. Não lembrava qual foi a última vez que havia chorado. Será que eu já havia chorado?
Quando voltava com uma cara forçada de alegria, Márcia, a bonequinha da turma disse algo ofensivo que até hoje não sei o que foi. Só sei que saltei nas fuças dela e a deixei quase desacordada.
Deram-me um documento para levar para a tia Nara dizendo que eu devia ser matriculada em outra escola, pois não seria mais aceita devido ao meu comportamento.
Queria voltar correndo para casa para mostrar minha aprovação com a melhor nota e ao mesmo tempo querendo morrer por estar sendo “convidada” a ir embora da escola.
Nunca havia bebido, mas busquei nos bolsos algumas moedas para comprar algo para encher a cara. Sabia que era isso que faziam as pessoas quando estavam no fundo do poço.
Não tinha mais que trinta centavos. Não conseguiria nada com aquilo.
Sentei no banco da praça próximo a minha casa e chorei novamente. Mas não foi igual.
Passados alguns minutos vi um catador de papel que vinha com seu carrinho qual burro de carga. Em suas sujas e calosas mãos havia uma garrafa plástica que supus ser de cachaça.
Sim! Vou puxar assunto e vou beber a cachaça dele. Ele ta no fim do poço e aí, eu também!
Quando ele chegou próximo, me olhou nos olhos. Fiquei muda! Aquele olhar eu já conhecia, era o olhar de louco, o mesmo olhar de meu falecido pai. Corri...corri...corri...
Chegando em nossa rua vi que as coisas não estavam normais. Em frente minha casa estava uma multidão. Não me contive...
_ Mana... – corri mais do que corri daqueles olhos e logo vi minha tia Nara ser levada por aqueles senhores de branco que não vieram quando eu mais precisava.
Na maca ia minha tia. Sabia que era ela, apesar de não dar para ver sua cara. Estava toda deformada e de sua face saia fumaça, bem como de todo o seu corpo. Desmaiei.
Acordei na casa dos Souzas – nossos vizinhos – e me disseram que tia Nara sabe-se lá porque havia derramado gasolina no corpo e acendido um cigarro. Logo ela que nunca havia fumado...
Estava eu nessa época já com dezoito e com o comprometimento dos Souzas de ficarem de olho, voltei para casa da tia Nara – eu e a mana -.
Todo dia depois da escola, tratava das codornas e ia ao hospital ver tia Nara, que não me via, pois estava em coma. Conversava com a calada tia e voltava para casa e mentia para a mana que estava tudo bem.
Algumas semanas depois fui ao hospital, como sempre fazia e encontrei a cama de tia Nara vazia. Procurei informações na recepção e soube por uma despreocupada atendente que ela havia morrido.
Fiquei atônita. Não sabia o que fazer e na dúvida fui embora.
_ Vou ficar com a mana, é tudo o que devo fazer! – decidi.
No caminho lembrei que esqueci de alimentar as codornas, secas e inférteis codornas, assim como tia Nara. Tinha de levar ração, passei na agropecuária.
_ Um quilo de ração postura, por favor! – O atendente me olhou com cara de nenhum amigo e disse:
_ Um momento, por favor! – O imbecil não sabia a perda que eu havia sofrido, caso contrario agiria como todos os seres humanos: como um hipócrita, e viria correndo me atender e me consolar.
Ouvi a conversa dele com outro cliente. O cara tinha um cão em estado terminal e queria acabar com o sofrimento dele, o que poderia fazer? O atendente “receitou” em voz baixa e inescrupulosa: Estricnina.
Pensei nas codornas. Elas como minha tia viviam presas e não tinham filhos, não será melhor elas partirem para outra?
Sem muita conversa comprei um pequeno potinho de estricnina e um quilo de ração.
Chegando em casa fui direto ao galpãozinho onde estavam as quatro gaiolas com vinte codornas cada. Vi a movimentação delas. Sabiam que era a hora da comida.
Podia administra-las o néctar de belzebu, mas vendo elas com fome, alimentei-as. Elas mereciam uma última refeição como nos filmes americanos.
_Então vamos lá!
Mataram a fome, agora era a minha vez. Retirei os bebedouros e misturei pequeníssimas partes do veneno na água.
Coloquei de volta os bebedouros, agora não só com água, mas com estricnina.
Puxei um banco e fiquei a olhar. As avezinhas vinham, bebiam poucos goles e tremiam as frágeis patinhas e caiam de lado. Outras vinham e bebiam e caiam sobre as primeiras até não sobrar mais nenhuma em pé.
Estava feito.
Fui à cozinha e fiz um saboroso suco de laranja. Enchi dois copos. Busquei no bolso a embalagem e distribui o veneno em partes iguais nos dois copos.
Não diziam que eu sempre trazia a morte? Pois bem... Agora teriam a certeza.
_ Mana!... – chamei minha irmã. Ela veio quieta sem falar nada e sentou-se a mesa em frente a seu copo de suco com estricnina. Se ela sabia, eu não sei! Mas nunca mais eles iriam falar coisas que não eram verdades sobre nós – eu e a mana- .
Fizemos um brinde e emborcamos os copos. Em pouco tempo um vulcão começou a erupir em minhas entranhas. Desci do banco em que estava e deitei no chão. Em minhas mãos estava uma caneta e um papel em branco. Antes de apagar consegui escrever:
_ Sempre acharam que eu e minha irmã éramos assassinas, pois agora podem ficar com a certeza, ela nunca foi culpada de nada. Quem sempre matou fui eu! Ela é inocente.
Perdi os movimentos, perdi o tato e a visão em pouco tempo. O único sentido que resistiu por mais tempo foi o da audição, pelo menos a tempo de ouvir, minha tia Nara que eu julgava morta chegar com mais alguém e ler em voz alta meu bilhete e dizer:
_Irmã?... Mas que irmã?... Ela era filha única!

Um comentário:

Jeferson Cardoso disse...

Olá Stanis! Esta semana estou divulgando uma “nova” postagem. Trata-se de um conto; que na verdade vem a ser uma reedição de meu blog. Sua postagem original ocorreu em 13.02.09; sendo esta a minha terceira postagem no blog. Naquela ocasião este texto não recebeu nenhum comentário. O texto é “O Sr. e o Dr.”. Espero que você, tendo um tempinho, o aprecie.
Um grande abraço, minha gratidão e desejo que tenha uma ótima semana!

Jefhcardoso