Ninguém mais sabe o que é um cântaro, mas era assim que estava chovendo. O ônibus parou como sempre parava e Lucia apeou. Não com a mesma desenvoltura com que costumava descer na época em que as pessoas sabiam o que era “chover a cântaros”, desceu com um certo cuidado, agora havia um pouco o peso da idade e não era mais a mesma mocinha e além do mais havia a chuva. Calçada molhada é um convite a fraturas no cóccix.
Droga... Deveria ter pegado a sombrinha antes de descer pensou Lucia. Correu para baixo de uma marquise. Puxou a gola do casaco ao encontro das orelhas para melhor se proteger.
Poderia abrir a porta de metal envidraçada que estava a sua frente, mas não o fez. Olhou o outro lado da rua pela imagem embaçada no vidro da porta e viu que o “Sérgius” estava aberto. Pensou em dar uma rápida passadinha lá para tomar algo para esquentar o corpo, afinal havia molhado-se ao descer do ônibus.
Virou-se decidida e rumou para o bar. Não olhou para os lados, não queria ser vista entrando num bar as 23:30h pelos vizinhos. Sabia que o fato de olhar para frente não impediria de ser vista, mas aquilo lhe dava alguma segurança.
Pensou em parar em frente à porta do “Sérgius” e ponderar se deveria entrar ou não, mas não o fez.
Tão logo entrou, sentiu um calor familiar vir ao seu encontro, só então percebeu o quanto estava frio lá fora.
Tentou tirar o peso da água que escorria e tornava pesado seu leve casaco. Viu ao fundo uma mão acenar, fez de conta que não viu, não queria conversar com ninguém e além do mais detestava essas pessoas que freqüentam bares. São pessoas fúteis, pessoas de vida sofrida e que aborrecem os outros com suas histórias e, aquela mania que elas tem de achar que só elas tem uma história triste a aborrecia.
Sentou-se num familiar banco alto e desconfortável em frente ao balcão. Não vou demorar muito – resolveu.
_Oi D. Lucia. Como vai? Vai querer o que?- O sujeito não era idiota, ele falava aquilo sempre só para começar a conversa, idiota era a pergunta, pois ele sabia o que ela queria.
_Acho que fiquei sem cigarro... Dê-me um maço, por favor.- Sérgio fez como sempre fazia havia dois anos e alguns meses. Entregou o cigarro e ficou esperando o próximo pedido. Pedido que ele já sabia qual seria, mas não ousava sugerir sem antes esperar uma deixa.
Lucia olhou de soslaio para a prateleira um pouco acima a sua direita. Viu o que realmente queria e falou que havia molhado-se e poderia ficar resfriada.
_Quem sabe à senhora não toma alguma coisa para esquentar-se antes de recolher-se?
_É... Acho que seria bom... Dê-me um gim com tônica.- falou aquela frase como se fosse a primeira vez em dois anos e alguns meses.
_Tó!- Idiota, porque falar “tó” em vez de “aqui está”?
_ Obrigado Sérgio, vou tomar este e cair na cama que amanhã tenho muito o que fazer na repartição.- pegou o copo com uma certa aflição. Sabia que deveria tão logo terminar aquele drinck ir direto para casa e dormir.
* * *
Sérgio deu as costas para Lucia e foi cuidar de seus afazeres, um dono de bar não pode dar dedicação exclusiva a um só cliente, ele aprendera com seu falecido pai que ser dono de boteco é algo mais. “Um dono de bar é como um pastor para as suas ovelhas” vaticinava o falecido pai. É verdade que o pai falava em pastor no sentido religioso, ele não, o casamento com Belmira o ensinou a não brincar com coisas de religião, ele preferia usar o termo como o de um pastor cuidando no campo de animais. Sim! Muitos daqueles pobres animais precisavam de amparo e, ele não se furtava a essa obrigação e só por isso não se sentia culpado em fornecer bebidas aqueles pobres e carentes animais.
Lucia bebeu vagarosamente seu gim tônica. O primeiro era sempre mais demorado. Conferiu no display do celular – 00:02h -, já era muito tarde, teria de ir embora.
_ A conta, por favor. – Sérgio abandonou os conselhos que dava a um cliente de sempre e foi ter com ela. Deu o valor da despesa e como de praxe ofereceu: _Mais um?
_É... Acho que mais um não seria demais! – E assim ficaram como sempre ficavam até o momento em que as pálpebras de Lucia começaram a pesar e a visão ia acompanhando o peso do sono.
Pagou e saiu tesa para não dar na vista que as pernas já não eram dominadas somente por ela. Abriu a porta e novamente percebeu que lá na rua estava frio.
Parou perto ao meio-fio. Já não chovia. Divisou a porta de seu prédio no outro lado da rua e foi em passos firmes – ao menos assim ela imaginava.
Parou em frente à porta e procurou na bolsa as chaves. – Porque as mulheres são tão idiotas e sempre carregam tantas coisas na bolsa – praguejou em meio à vã tentativa de achar as chaves. Passaram alguns segundos e nada de as encontrar. Não havia jeito, teria de emborcar o conteúdo da bolsa na soleira da porta para poder encontra-las.
Fez! Nada! Nem sinal das chaves. Tornou a recolocar aquele infindável conteúdo na bolsa. Pendurou-a no ombro e escondeu as mãos do frio nos bolsos do casaco. Os interiores dos bolsos eram confortavelmente aquecidos, mas o da direita havia algo duro e frio. Eram as chaves, só então lembrou que havia separado-as ainda no ônibus para não ter o trabalho de procura-las ao chegar em casa.
Não foi muito penoso encontrar o buraco da fechadura. Girou as chaves no sentido horário, enquanto olhava pelo espelho embaçado do vidro da porta se alguém a observava. Ninguém! Ainda bem, ela sabia que havia bebido mais da conta como normalmente fazia há dois anos e alguns meses.
Não pegou o elevador e foi pelas escadas. Pela manhã ela sempre usava o elevador, mas a noite sentia um certo enjôo. Sabia que era o efeito do gim, mas não aceitava o que sabia. Era só dois andares, mas era terrível. – Esses malditos arquitetos fazem escadas fora de padrão. – cada degrau tinha uma altura diferente e o pior é que amanhã essas alturas mudam novamente.
Abriu a porta de seu apartamento. Entrou na ponta dos pés para não fazer barulho. Tateou a parede e encontrou o interruptor. CLIC!...
Não adiantou o cuidado para não fazer barulho, lá estava Osvaldo sentado no sofá de sempre olhando ela chegar.
Procurou não olha-lo ou pelo menos não olhar em seus olhos baços. Ela não suportava aquilo. Fechou a porta e largou a bolsa sobre o outro sofá. Com a ponta do sapato esquerdo descalçou o direito e após fez o mesmo com o outro pé. As chaves caíram com um ruído metálico sobre a mesa de centro, mas Osvaldo continuou ali a fitá-la como sempre fazia quando ela retornava da repartição altas horas da noite sob o efeito do álcool.
Não falou nada e foi para o dormitório apagando a luz da sala. Bateu a porta e acendeu a luz. Estava cansada, não sabia se mais pelo dia de trabalho ou pelo gim.
A cama já estava pronta. Deixava a cama sempre pronta antes de sair para o trabalho, pois sabia o quanto era penoso arruma-la à noite naquele estado.
Às vezes ela antes de deitar fazia aquelas promessas de no outro dia voltar cedo para casa e não beber, mas fazia tempo que havia desistido, pois sabia que era em vão. Ela não teria coragem de voltar para casa cedo e “de cara” enfrentar o olhar triste de Osvaldo.
Abriu o guarda-roupas e tirou o pijama. Olhou-se no espelho interno da porta do móvel e viu uma mulher que chegava aos cinqüenta e ainda guardava um pouco da beleza de tempos atrás. O cabelo estava um pouco molhado e dava um tom um pouco sensual ao seu rosto. Resolveu não seca-lo. Tirou o casaco e o vestido, ficou de lingerie. Olhou-se. Tirou o resto da roupa e ficou a olhar-se no espelho.
_Posso não ser uma menina, mas aposto que muito homem ainda me deseja. – Fez uma pose que ela lembrou de ter visto em uma revista masculina. Achou-se sexy. Virou-se um pouco de lado para fazer outra pose e viu Osvaldo a olha-la parado em frente à porta do dormitório.
_Sai! – gritou ao mesmo tempo em que colocava rapidamente o pijama. Osvaldo continuava impassível.
Vestiu-se e pulou na cama. Apagou a luz e cobriu-se até a cabeça. Ficou imóvel por um longo tempo. Aos poucos foi frouxando a musculatura e virou-se de bruços. – como ela gostava de dormir.
Tentou pegar no sono, mas logo sentiu, não um toque, mas uma sensação que seus cabelos estavam sendo acariciados. Um frio correu-lhe pela espinha e fez ela pular de sua posição para a posição sentada. Deu um grito que na certa acordou alguns visinhos que nem sequer deram atenção, já acostumados que estavam com ela. Acendeu a luz...
_Osvaldo – falou para um pálido e triste Osvaldo que estava estaqueado em sua frente com a mão suspensa – eu já lhe falei um monte de vezes, você não pode mais vir aqui. – Osvaldo a ouvia petrificado assim como os seus olhos também estavam.
_Isso não é certo! Vá embora! Me deixe! Você não vê que isso não é normal? – e virou-se de bruços novamente.
Lucia espichou o braço, mesmo sem olhar - pois seus olhos estavam fechados de uma forma que até causavam dor – e apagou a luz.
Vá embora pelo amor de Deus! – e apertou os olhos mais ainda e começou a contar lentamente...
_Um...dois...três... – e foi até o dez, cada vez mais lento até adormecer.
* * *
07:00h.
Lucia acorda. Sente um amargo na língua e no céu da boca. Está desperta, mas parece que o corpo nada dormiu.
Lembra de Osvaldo e pula para fora da cama. Não precisa acender a luz, pois a claridade já invade seu apartamento – sempre depois da chuva vem um dia de sol – e olha para todos os lados a procura do falecido marido.
Nada! Mais um dia que Lucia ficará na dúvida se as visitas de Osvaldo é fruto do álcool ou realmente ele sempre a espera chegar em casa desde o trágico dia em que ele foi fatalmente atropelado.
Stanis Fialho, 10.06.2007
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