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segunda-feira, janeiro 23
"OVO PARTIDO" - RE-POSTAGEM 17 ou sem tempo e/ou preguiça e/ou inspiração
POSTADO ORIGINALMENTE EM 2010
Cardoso quando soube que Lígia estava grávida teve a certeza que o dia em que ela desse a luz seria o dia mais feliz de sua vida. Para ele até então o dia de seu casamento fora o dia mais feliz de sua vida, mas agora haveria outro melhor ainda. Sempre que ele olhava a intumescência do ventre de Lígia ele tinha essa certeza.
Ele nunca fizera alguma alusão daquele ventre com algo, mas no dia em que teve a noticia que o feto estava em uma posição que dificilmente possibilitaria um parto normal começou a velo como a um ovo. Um ovo que é partido ao meio para liberar a clara e a gema. Era uma imagem que não o agradava, mas que não saía de sua cabeça. Via aquela barriga como um ovo que era fendido com uma leve pancada de uma colher em cutelo e após era aberto por dois dedos estranhos que o separava em duas partes e deixava escorrer aquilo que um dia poderia vir a ser uma vida, não fosse a agressão sofrida.
Pensou até em análise para deixar de pensar naquilo, mas com o tempo acostumou-se. Barriga ou ovo tanto fazia: dali sairia sua filhinha e seria o dia mais feliz de sua vida.
Chegado o esperado dia, fumou uma carteira de Marlboro Lights, apesar de já ter largado do vício há mais de seis anos. - Achava que aquilo era o que um pai fresco deveria fazer para acalmar a espera -.
Passada uma hora e pouco, vieram informar que sua pequenina havia nascido. Ficou naquele momento o homem mais feliz do mundo. Gastou todos o créditos de seu celular a avisar a todos a boa nova. Até para seu irmão Pedro, com quem estava brigado a mais de dois anos ligou.
Levaram-no para ver a pequena Marta – nome que ela iria herdar da mãe dele – e chorou copiosamente com ela nos braços. Quis ver a esposa. Nesse momento descobriu que o dia mais feliz de sua vida na verdade não o seria. Ligia havia perecido na mesa de parto. Martinha havia dado muito trabalho e mesmo a maravilhosa e cara tecnologia não fora suficiente para garantir a vida da mãe, somente da filha. O dia mais feliz de sua vida, havia tornado-se um dia sombrio. Nuvens negras, não apenas metafóricas, mas de verdade cobriram o céu. Choveu muito no dia que seria o dia mais feliz da vida de Cardoso.
Passados velório, enterro e dias de muita chuva e choro, Cardoso estabeleceu-se em casa nova. Não conseguia viver embaixo do teto em que fora feliz.
Os anos passaram e Martinha foi crescendo. Cardoso com a ajuda de uma babá cuidou para que sua filha tivesse uma vida digna e feliz apesar de não ter a presença de uma mãe. A babá chegava cedo da manhã e Cardoso ia para o banco trabalhar, quando voltava entristecido para casa, ficava somente ele e a pequenina.
No dia em que ela completou seis anos deu uma festa com a presença de todos familiares e amigos. Até o irmão Pedro esteve presente.
Fim da tarde, com todos os convidados tendo ido embora, começou a limpar a casa que estava de ponta cabeça devido à bagunça da festa. Recolheu brinquedos, cinzeiros sujos, restos de docinhos e salgadinhos, copos e pratinhos. Lavou o que estava sujo e guardou tudo em seus respectivos lugares.
Após tudo pronto, dispensou a babá e sentou-se para fumar um merecido cigarro – desde o dia que Lígia morrera voltou a fumar com uma voracidade que parecia ser para compensar os seis anos sem fumo -.
O cigarro chamou uma dose de uísque. Serviu sem cerimônia. Voltou a sentar-se para mais um cigarro. Martinha que brincava com uma bola nova, recém ganha de uma tia acertou o copo ainda cheio de bebida que rolou sobre a mesa de centro molhando um jornal ainda não lido e a carteira quase cheia de cigarros. Cardoso pulou em vão tentando evitar o desastre.
A pequena Marta assustou-se com o movimento desesperado do pai e começou a chorar. Cardoso de joelhos no chão ao ver o jornal e os cigarros molhados virou-se abruptamente e gritou para sua filha calar a boca.
_ Chega!
O grito causou o efeito contrário. Assustada a menina chorou ainda mais. O jornal e os cigarros molhados, somados ao estridente choro e soluçar tirou o resto de paciência que habitava a cansada e confusa cabeça do pai. Levantou-se com um grito de “chega” e puxou a pequena pelo pulso. Com uma mão a prendia e com a outra dava violentas palmadas nas pernas e nádegas com o acompanhamento de novos “chega”.
Cansados, o pai parou de bater ao ver a pele branca maculada por manchas avermelhadas e a filha, parou de chorar ao ver os olhos vermelhos e insanos do agressor.
Pegou-a no colo e correu até o quarto da menina. Soltou-a sobre a cama e como um cego e louco mandou-a dormir. Saiu e bateu a porta. Estancou com as costas arfantes contra a porta recém fechada. Correu para a sala e jogou-se no sofá.
Chorou! Chorou talvez mais que a própria filha havia chorado, tentando buscar no fundo do cérebro ou do peito a resposta para a pergunta que lhe atormentava: Chorava porque havia batido na pequena Marta ou porque creditava a ela a morte de Lígia?
Algo estava partido! Algo estava entre eles fendido como se fosse uma casca de ovo.
Tentou em vão lembrar da barriga de Lígia, mas só veio-lhe a memória a maldita imagem de um ovo . Um ovo partido.
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